Poupe-me, passado
Hoje não quero mergulhar no rio da minha infância nem escalar a goiabeira no jardim do vizinho. Prometi a mim mesmo que hoje, só hoje, a lembrança de minha verdejante criança, criada no campo em meio ao milharal e às chuvas quentes de verão, não subiria à tona e nem tomaria conta do meu ser que tanto luta para seguir em frente. É inevitável olhar para frente imaginando o que faria se minha mãezinha estivesse ao meu lado agora, se meu pai me acalentasse em um último sono e se meus irmãos me vissem crescido e mais maduro que as frutas que costumávamos roubar… é, na aurora de minhas andanças, a simplicidade era um tesouro, e apenas os mais nobres de espírito o detinham. Veja só, o passado me empolga, me afaga. Se uma palavra, um cheiro, uma memória me relembra a doçura de um tempo vivido, instantaneamente como em um passe de mágica que pertence ao destino, encadeio todas as histórias que vivi e que guardo comigo, nada passa despercebido, nem mesmo um olhar rápido, nem mesmo um pequeno amor. A saudade é eterna, porque tudo o que é eterno se derrama em saudades. Já fui muitas faces, muitos bandidos e mocinhos, vi muito sóis e luas, dores e prazeres, mas nunca fui o que hoje sou, pois aprendi com o que passou na tentativa de abstrair o máximo proveito dos ensinamentos da madre-vida. E o que hoje sou, eu não sei nem saberei, não sei ser rei do que virá, por isso apenas estou, sem ser completo e finito, mas difuso e duradouro. Parece que fracassei em não seguir viagem no trem do passado que sempre volta, apita, e estremece meus trilhos, me arrancando dos prumos, duvidando de meus rumos e desaparecendo na fumaça de seu próprio brumo. O que me resta senão desembarcar na próxima estação? Sei até que ela se chama esperança, e sei ainda mais que o futuro desse trem é descarrilar, perder-se nas alturas das serras e tombar montanha abaixo, esparramando com um baque as memórias fugitivas de toda uma vida.