Pretérito mais-que-perfeito
Não basta uma lembrança perfeita, o bom passado é a mais que perfeita recordação. Não se contenta em se trancar na jaula com o cadeado da resistência poética, não espera uma memória desocupada para subir à mente e dela se apoderar com a chave pesada de sua emoção ou de seu remorso. O mais legítimo representante da legião nostálgica, aquele que mergulha no mar sem espumas das horas vagas da noite sem fim e sem começo, não é aquele que remói cada fresta do que foi e que jamais voltará a ser, e que é facilmente identificado por qualquer outro como ele. A verdadeira nostalgia está impregnada pelos ares repentinos de um sonho futuro, o exercício de lembrar se inicia antes do momento que um dia ele migrará para a caverna do eterno ontem. Sim, o verdadeiro homem que se ocupa do passado e vive em função do que ele ensinou, não apenas o transporta de forma involuntária para o presente, que para ele, pode ser o pretérito de uma vida, mas idealiza seu futuro, desafiando a rima do tempo e a métrica de seu limite, personifica o que ainda será e o ornamenta com a perfeição intocada em que um dia se transformará. Eis a grande diferença, o homem comum olha para frente com as lentes da oportunidade de um bem-viver, enquanto que o horizonte do ser nostálgico não se estagna simplesmente no que foi, não se estabiliza, está além de qualquer linha, pois a única certeza que tem diante de um futuro tão inexato, é a de que logo tudo não passará da visão do mundo na perspectiva da serra que o vê de cima, o que resta é construir a história ansiosa do depois de amanhã com a lembrança querida do amanhã que se converterá em ontem. Por que somos tão afoitos em capturar momentos a fim de que se transformem em memória? a resposta é certeira e até rima: porque queremos ser história. Escrever amores, aventuras e batalhas, viver para contá-las, isso move o ser humano, bem sabe ele de suas limitações em se tornar eterno, os registros são a melhor lembrança que o mundo já caduco dispõe, e a melhor maneira de alcançar o posto da imortalidade de suas ideias. O passado ainda é o motor do mundo, e será até o dia em que esperança e lembrança rimarem e se fundirem como amantes. Os homens que se dedicam à história dos povos e dos tremores, devem entender do que falo, há peças vivas no que já foi, que se encaixam no hoje e no agora. Seguir em frente e ignorá-lo seria sinônimo de perda de uma vasta sabedoria remanescente. O futuro está aí, na ponta de um passado inacabado, precisamos de tudo aquilo que está em seu poder, ele é a lembrança pura de um dia que ainda não chegou, e não é, mas que simplesmente, já se foi, como tudo se vai, como tudo que fica.