Chamas de um existir passageiro
Quando a crua existência bater em sua porta, não recuse-a, todos sabem que ela incomoda, machuca, indaga, embriaga, mas não deve privar-se de viver todas as emoções que a vida, fingindo-se despretensiosa, proporciona. Fite sem medo e demoradamente tudo aquilo que ameaça surgir, ao menos é claro que se queira viver em uma utopia decadente de sentido e descrente dos desvios humanos. Há dias em que sou um quarto vazio, um sótão empoeirado que se funde na fantasia das antiguidades, um reduto no topo pontudo de uma torre discreta, um não-ser aterrado em sua condição, que recusa a reflexão do palpável, que encerra em uma batalha entre os eus que insistem em se esconder em suas profundezas mais obscuras. Não há portas ou janelas nesse quarto em que hoje me encontro e me desencontro, aqui sempre foi o meu lugar, nunca fugi daqui. Posso ter viajado pelos montes, acompanhado riachos em suas margens e conhecido a miséria humana que os becos escondem, mas meu olhar fosco nunca aprendeu a se desviar do claustro a que pertenço. Em outros dias, tudo o que mais quero é fugir daqui, com docilidade e alegria estampada no rosto, bater a cabeça em uma dessas paredes até que uma brecha de escape se abra, até que eu me esqueça por completo, até me descobrir em outra alma e sonhar que aprendi a viver. Sinto que ao abandonar minhas hostilidades, manias e repugnâncias, eu iria ao encontro da liberdade a qual uma parte de mim nunca quis renunciar, voltaria ao planeta amorfo das inconstâncias e à confusão tranquila de toda a ordem, massacraria sem uma gota de sangue todos o mins revoltosos. Apesar de tudo e para o pesar daquilo que sou, no fim, acabaria por voltar àquele lugar sombrio e inóspito ao alheamento, em todo fim estaria eu no começo de tudo, não há jeito de abandonar o pouco que sei sobre minhas dores e ignorar aquilo que eu jamais descobriria se partisse de mim para sempre. Estou agora, neste exato momento, em um quarto que não me agrada, mas também fugir não me é conveniente, estou apenas mergulhada nessas palavras que me prendem, quem hoje está nos visitando, a mim e a você, enfeite de gesso na prateleira que pouco falou até agora e muito ouviu, é a pura existência em sua forma mais sublime, artística e implacável, trazida pela majestosa centelha das paixões humanas e dos desvairios testemunhados pelo eu mais eloquente de mim.