Quarentena
Quem ousaria me despir do direito de ser livre? É a primeira vez que sinto minhas asas doerem por terem desaprendido a voar. Posso estar em um mesmo lugar a todo instante, mas meu coração não se contenta com uma paisagem apenas. Sinto crescer em mim a ânsia de querer ser neste momento aquela que sempre deixei para depois. Estou debaixo de um teto, entre paredes, observando os detalhes que antes me eram despercebidos, cansei-me da monotonia certa de tudo aqui dentro, estamos em meio a um caos, lá fora se instalou o perigo, o mundo revirou-se em um intervalo entre duas tosses secas. Sou um pássaro de alma aprisionada mas que cresceu livre, hoje encerro-me aqui, em um ninho que me refugia e isola da revoada, ouço os gorjeios sinceros de ajuda e esperança ou então os imagino, todas as vezes em que miro uma janela aberta e iluminada de um ninho. Vejo escolas e escritórios fragmentados, remotamente tristes pela ausência, comodamente satisfeitos pelo conforto que o lar proporciona. O que é o lar senão um igual refúgio, um abraço certeiro ao final de um dia escuro? Ninguém ousa pisar lá fora ou deixar um rastro de penas, o mal que vaga por aí tomou conta da vila, da aldeia e do mundo. Se me distancio de outras aves vívidas ou daquelas que há muito não voam, perco-me de um eu que as encara como semelhantes, mas encontro nas adversidades que se pintam, um outro eu, que sempre se curva em direção à essência mais íntima que preenche meu fundo oco. O sol ainda brilha lá fora, os dias vêm e são livres para alçar vôo, as noites logo anunciam mais um dia cárcere, as flores desabrocham e o tempo passa, tudo segue a ordem e a harmonia da vida. É tempo de relacionar-se consigo mesmo e de aprender a lidar com os medos, angústias e paixões que nos parasitam. As ventanias sempre anunciaram tudo isso, mas talvez, nunca havíamos percebido antes, nem nos dado conta de quão valiosos eram esses ares.