Profundezas

Aljôfares fúnebres mancham o solo humano, inspiração cai e renova-se como a sublime e torrencial garoa pairando do subúrbio atmosférico, lágrimas incessantes e ininterruptos pingos deleitam-se em afogar corações partidos, afoitos pelo sofrimento e marejados pela dor.

Despeço-me de pensamentos assoladores e fúteis buscando sementes ascendentes de bons frutos. A Terra, encoberta de púrpura sanguínea e chamuscada pelas cinzas da auto-destruição cíclica, metamorfoseia-se, distorcendo visões, a perspectiva mundana e cruel em nosso interior. A pluviosidade acalenta, temperamenta a imaginação, lapidando granadas e sobrevoando revoadas joviais.

O futuro não espera, o passado não perdoa e o presente já virou nostalgia. Vivo em um mundo diferente do seu. Tudo depende de sua perspectiva. O breu enevoado cinzento e abrupto dispersa-se e dedilha o oriente, carregado de urros, sons e poesia. O derradeiro vibrar crepuscular irrompe os rumores noturnos, esperança soturna e cálida de uma alvorada que talvez jamais amanheça.

Anseio por loucuras surreais, maluquices d’alma, clamores insanos. Enquanto tiver asas, escreverei uma carta, aprisionarei-a em uma garrafa e jogarei ao mar. Talvez um dia você a encontre, talvez permaneça sob domínio amor da minha vida, poderei eu ser a eterna responsável pela morte de uma criatura do mar, quem sabe será inspiração e esperança para um náufrago, talvez seja encontrada daqui a mil anos como resquício histórico ou eternamente esquecida. Provavelmente jamais saberei, permaneci em anonimato, o mistério me fascina alucinadamente.

Enquanto sobrarem lembranças, escreverei mensagens nas asas de mariposas. Enquanto a lua brilhar, caminharei sem rumo sob os ares noturnos. Enquanto viver, nascerei para ver o sol. Enquanto ajudar, humana serei. Enquanto idealizar, distribuirei livros pela cidade à matinês. Enquanto contemplar almas, andarei na chuva. Enquanto aprender, sábia serei. Enquanto amar, escreverei. Enquanto sentir… descubro agora que poetisa virei

No corpo vítreo de uma larva ludibriada, encontro convalescença para sua alma. Oh céus, onde acabará esse princípio infundado? O abismo de lamúrias ficou eternizado nas profundezas pálidas da cavidade da alma. Árvores já não me ouvem mais, galhos roçam a tez alva do outono e cigarras enclausuram-se no subterrâneo ardil enquanto a neve ameaça aturdir a calidez de sua abstrata brancura. O temor gélido que espanta ceifadores resplandece memórias e endurece vidas. Ruboriza-se em melancolia primaveril, os ares silvestres, a erva e o espectro, a cacofonia selvagem da ordem natural, traços orgânicos feto do solo nutre as manhãs do sol eclipsado pela aurora de raios. Relâmpagos? Estes são a carnificina pútrida da exumação noturna, que tortura corpos e destinos. Sonhos, cicuta benévola da eminência humana, refúgio psicodélico de seres condenados à espera e assassínio dos instantes. Vida? Repercussão da morte. Morte? Inquisição da vida.

Fugi para os bosques, onde o pólen das magnólias atormentou minhas narinas, o som da relva acariciada pelo vento ecoou em meu coração, o canto das náiades e o corpo das ninfas sugaram meus instintos. Lá estou, cá escrevo. A noite é sóbria, o amanhecer é brando. Adormeci das profundezas urbanas e despertei na realidade coberta por um tapete de folhas secas. Após muito tempo rondando estes jardins, reencontrei a velha fonte, a qual um dia já forneceu água cristalina aos viajantes impuros. Olhei de relance e de longe a avistei em todo seu encanto, emitiu a tempos a sinfonia paradisíaca de um oásis, em um deserto fúngico, fui atraída a ela na mesma proporção em que a carne seduz o canibal, sua porcelana já era árida, os ladrilhos ao fundo eram criadouros de insetos e fuligem, o musgo se infiltrava e um bárbarie instrumento produzido por mãos humanas desencabeçou o ser angelical ao alto. O que eu poderia fazer além de continuar o itinerário por aquelas terras? Avancei alguns passos e fui levado pelo pantanoso sopro visceral até um recinto agourento, calafrios testaram minha sagacidade e o medo atingiu o nó sinoatrial, sussuros humanos ininteligíveis ultrapassavam as grades de uma jaula, a selvageria de três carnívoros na escolta da clausura atestava aqueles que tinham domínio do recinto, soberanos da estirpe animal que perpetuavam o definhamento do homem desventurado.

Somos almas transtornadas pelos impropérios, intoxicadas pela rudeza do mundo lá fora. Muitos creem que adoeço em minha gaiola, quando na verdade, estou algemada à uma poesia que me liberta. Passendo pelos bosques, encontrei minhas asas e descobri que poetas são inatos.

Flora Fernweh
Enviado por Flora Fernweh em 18/02/2020
Reeditado em 31/10/2021
Código do texto: T6869253
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