O autor por vivo que está, teme a Morte; por morto que haverá de ficar, tem receio de se submeter a um novo nascimento, pois dúvidas, tem ele, sobre a existência da eterna Morte.
 
Por que tanto tememos a morte?
Por que tanto nos assombra este único ente capaz de provocar a dissolução de um organismo vivo?
Por que tanto nos assusta a substância mais consistente que há para nos alcançar com seu aguçado alfanje?
Já de início, podemos dizer que o morrer é um ato inerente e intrinsecamente fisiológico ao indivíduo vivo, ou seja, se vivo estou, hei de morrer. Homo ex quo esse incipit in hoc corpore, in morte este — O homem começa a ser na morte no momento em que começa a ser no corpo *; e ainda, Vita ipsa cursus ad mortem est — A própria vida é uma corrida para a morte. A ser assim, e assim sempre haverá de ser, nenhuma pessoa pode no lugar de outrem, morrer, não obstante, pode alguém por outro morrer; mas, esse outro, jamais conseguirá dissuadir a morte de seu propósito; jamais conseguirá demovê-la do seu intento, com súplicas e lágrimas, ao alegar que aquele que por ele, foi morto, da sua própria morte, ele o desviou. Assim, temos consciência que, inevitavelmente, o ente humano, de per si, haveremos de assumir a nossa própria morte; portanto, por esse irrevogável enfrentamento pessoal, que teremos com a morte, já podemos afirmar que ela é o mais insondável enigma que nos espreita; é sem dúvida um mysteriem tremendum.
Dela nada sabemos, ou antes, dela temos uma certeza cristalina, qual seja ela não nos ameaça, pois para fazê-lo, não tem necessidade alguma, visto que, inexoravelmente, nos alcança; ainda, podemos dizer que dela, conhecemos o que poderia ser tomado por acidentes seus, quando na verdade, não passam de seus disfarces essenciais; entre esses, que são muitos, não mais que três, são necessários e suficientes para tanto nos aterrorizar, senão, vejamos: por vez, ela se apresenta a nós, transvestida em sua própria inelutabilidade, ou seja, contra essa senhora não há absolutamente o que fazer; não há espada que a intimide, não temos ouro suficiente para suborná-la, não dispomos de maior astúcia para ludibriá-la, por fim, não temos nenhum modo para arrostá-la. Assim, quando chegar a nossa hora para afrontá-la, de cabeça baixa, nada nos resta senão pedir a ela, que de nós, não tenha nenhuma pena, contudo, para menor angústia nossa, uma última expressão de desejo, ela pode aceitar, qual seja, que não se empene o gume de seu alfanje...
Em outros momentos, ela — a Morte — se transforma na sua própria iminência; com esse disfarce, ela nos induz a viver como se ela não existisse, ou estivesse longe de nós, ou nem mesmo nos dissesse respeito; assim enganados, vamos dissipando a nossa vida em uma infinidade de misérias... Entretanto, a Morte por ser um ente que está sempre a compor a nossa sobra, nos assombra tanto, por não se ocupar com o futuro, pois está ao nosso lado a cada dia; enfim, continuamente, a Morte à Vida da atenção, para que em dado momento, que dessa não depende, interrompe seu curso.
Finalmente, ela se metamorfoseia na sua própria inexorabilidade; e essa vestimenta que lhe envolve todo o corpo ocultando-lhe as garras, é tão singular que nem mesmo Deus possui, ou antes, a Ele não interessa nenhum disfarce... Com essa roupagem, ela jamais se move a rogos, pois o seu espectro avança contra todos os homens sem fazer acepção de pessoas, assim, ela — a Morte — a vida de ninguém, disfere, desfere, sobre a vida de quaisquer viventes, quando lhe aprouver, o seu alfanje...
Ela muito bem nos vê, embora, se faça passar por cega, para não nos distinguir e ainda mais nos iludir; contudo, sua visão nos alcança por mais que nos refugiemos da sua presença; ela — a Morte — jamais nos revela a sua face, para tanto, anda sempre de cabeça curvada para baixo, com efeito, está sempre a olhar para os seus próprios pés, logo, ela não volta seus olhos à face de ninguém, antes de desferir o seu golpe fatal, ceifando sem piedade, a vida de alguém; continuamente, assim por se mover, entendeu de nos julgar pelos nossos pés, ou antes, entendeu de nos julgar pelos nossos passos.  Eis aí a única artimanha que ela — a Morte — não conseguiu nos ocultar, qual seja a de bem sabermos que ela nos julga pelos nossos pés, ou antes, pelo nosso caminhar... Esse critério único foi determinado quando ela — a senhora da Vida — observou que nosso viver trilha um caminho tortuoso, cruento, áspero, espinhoso, repleto de armadilhas... Então, seguindo a nossa trilha, ela verificou que para cursar tão perigosa senda, carecíamos de muita cautela a cada passo antes que esse pudesse ser... E assim ela vem nos seguindo, e nos observando... Não nos arma nenhuma cilada, mas também não nos faz nenhuma advertência sobre quaisquer perigos à nossa frente; tão somente, vai observando nossos passos em falsos, inseguros e precipitados... Então, constatando-os falhos por repetidas vezes ou avaliando as nossas falhas, ainda que por consequente insipiência se dão, nos arrebata sem a mínima pena. E se tentarmos sair da trilha? Para quem não sabia, ainda que tarde, logo há de saber, que sem demora, o seu alfanje — o da Morte — sai ao nosso encalço...
Quando nosso caminhar deixa de ser firme, tornando-se inseguro, desequilibrado, nós sempre sentimos medo e temos cada vez mais receio de continuar nossa caminhada, com efeito, este temor é imposto pela morte que está a nos seguir... Está sempre atenta, jamais se movendo a rogos, incansavelmente, nos espreita... A ser assim, temos consciência que é a Morte que nos mantêm na trilha da vida, à custa de sua vigilância. É ela que, verdadeiramente, nos deixa viver... Assim, por tanto temer essa maior guardiã da vida, deixamos de entender que o viver é o maior jugo que a própria Morte nos impõe. E ainda, não bastando tão grande ardil, para nos causar menor apreensão, ela — a Morte — muita vez, nos impede até de darmos os nossos primeiros passos à Vida... Logo, com segurança, podemos dizer isto: Que sábia é a Morte! Se nos revelasse a sua face, talvez, abraçando-a, rechaçaríamos a Vida, que é a sua própria razão de ser... 
De outra forma, quando vamos seguindo nossa jornada apoiando bem nossos pés, avaliando com cautela o terreno a ser tocado, e, sobretudo, respeitando as estremas do nosso sítio, vamos ficando cada vez mais dispostos a continuar nossa trilha. E a Morte? Continua a nos seguir, entretanto, ainda que não desejasse fazê-lo, vai perdendo o ânimo para perscrutar com maior atenção os nossos passos; vai aos pouco, tomando distância de nós, quase até nos perder de vista, quando então, vai se envolvendo com os passos de outro alguém desatento que mais atenção lhe chama... E assim vamos esquecendo-a, e ela, não mais de nós, vai se lembrando; aí, vamos caminhando, caminhando... Cada vez mais tranquilos... Contudo, no final da nossa vitoriosa jornada, para surpresa nossa, a senhora do nosso ocaso,  não percebeu que para adentrar nesse último sítio, havia a via exclusiva àqueles que podem derrotá-la, assim, sem lhe restar outra alternativa, ao buscar um atalho, nos surpreendeu de braços abertos, porém, nesse momento, não mais nos causou temor o seu inevitável abraço, pois nada mais teremos além de uma pálida e fria despedida da nossa velha adversária — a Morte — que a nossa vida, pela vida afora, quis sempre aniquilar; agora, por uma nova vida, fora a Morte derrotada; assim não mais com sua tenacidade, ao nosso lado, continuará, pois, através daquela via, teremos uma nova jornada, e por essa, ela — a Morte — não mais nos seguirá...  
 
 
* — Santo Agostinho, De Civitate Dei



 
















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Eugene Garrett
Enviado por Eugene Garrett em 19/01/2020
Reeditado em 20/01/2020
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