AO FILHO DO ABORTO

Eu vejo teu rosto em meus sonhos, conheço o brilho de teus olhos e ouço o som da tua risada, embora nunca tenha te encontrado.

Sei o que seria beijar tua testa pequena, abraçar teu corpo miúdo e cantar até que você durma, embora nunca tenha te visto.

Sinto a tua presença por perto, brincando e rindo alto, te escondendo por detrás dos móveis, chego a ver teu vulto ao meu redor, e nunca compartilhei de tua companhia.

Faço planos absurdos sobre teu futuro, um futuro que você teria, um futuro invisível, inatingível... Se ao menos eu tivesse, um dia, ouvido os teus sonhos!

Te pinto num quadro mental, imagino teus gostos e gestos, teu jeito e trejeitos, mantenho a tua fotografia em preto-e-branco, nos confins de minha subconsciência e nem sei o teu sexo.

Você habitou dentro de mim por pouco tempo, mas o suficiente para existir e eu mesma sou a prova de que você existiu, posto que você se foi, mas algo de você permaneceu em mim.

Ah, se eu pudesse voltar no tempo! Voltar ao momento exato em que tive em meu poder a chance de te defender e não o fiz... Eu era tão inexperiente, estava tão acuada e assutada, certamente tanto quanto você.

Ah, se eu pudesse ter tido a coragem e a força para ficar a teu lado, desafiar a tudo e todos, mostrando antes de mais nada, o meu amor por você... Foram tantas as pressões e empurrões em direção do desfecho fatal... Ah se eu entendesse o que entendo agora!

Mas eu não posso mudar o que se foi! Eu não posso te dar de volta o que te tirei!

Me resta apenas sonhar contigo, com a pessoa que você seria pra mim, com o amor que você vinha trazendo, com as juras de felicidades mil, sufocadas... mas nunca esquecidas. O teu amor ainda ecoa dentro de mim.

Rezo por você diariamente e me alimento da esperança de, um dia, ainda vir te encontrar, mesmo que em outras dimensões, e que eu possa cair de joelhos e te pedir perdão. Quem sabe, então, poderei, ao menos uma vez, ouvi-lo me chamar de “mãe”.