Hoje
Aqui bem próximo, do outro lado da cerca, o vizinho sonha dormindo. Ouço os seus soprados. Em seu quintal, o jardim desabrochou. O pomar floriu. Trepado no galho, o galo estufou o peito e chilreou alto. Janelas e portas enfileiradas na rua. Na alameda, nenhuma vivalma.
O perfume de dama da noite é o sentinela. Ali, mais adiante, o silêncio é quem fala sobre a noite bem dormida que está curso. Do outro lado da cidade, outros dormem como pedra posta e nunca mais retirada.
Em breve, bela, jovial, quem despertará do sono que não dormiu, é a aurora. Regozijo passarinheiro. Sol incandescente. Vento que sopra. Folhagem que farfalha. Vagalumes alumiantes. Espetáculo de luzes e cores. A cidade que permanece dormindo em preto e branco para a Vida que já despertou a muito tempo para o dia de hoje. O hoje é o presente e será sempre atual.
Carrilhão badala. Assentos desocupados na igreja. O auto-falante que vocifera: "Sonho-sonhado e não realizado, é noite de sono perdido e sonho inutilizado".
Ainda que feita com versos pobres, tudo na Vida conspira poesia. Por fim, findou o hoje que nem começou!
Já andei por tantas terras. Já venci mil guerras. Já levei porradas. Dominei meu medo. Cavei trincheiras no meu coração. Descobri nos pesadelos sonhos mutilados. E por serem usados pela solidão, acordei no meio de anjos caídos.