Foi em uma madrugada de poesia (11 de novembro de 2007), encontrei um esboço deste texto arquivado no meu computador. Estava datado assim: Rio de Janeiro, Meia-noite, 27 de dezembro de 2000. Emocionada, reformulei-o e ampliei-o, por duas outras madrugadas: 11-13 de novembro de 2007. Mantive o título, a ideia central, a música e o sentimento. Ficará em aberto, para mais lembranças ou novas emoções...
Ao som de Eb Tide
Criança feliz!
Sentei-me à mesa, junto aos meus pais e irmãos; alimentei-me de arroz, feijão e fubá, carne assada, salada, vez ou outra guaraná, pizza gorda aos domingos, bolo quente, pão de queijo e pão-de-ló.
Fui brincando de donzela, de rainha e de fada, fiz-me bruxa malvada e brinquei a preferida brincadeira de ser mãe... Criei boneca de pano e de sabugo; botei-lhes um quase seio na boca, fiz roupinhas de retalhos. Ganhei boneca de louça, tranças negras, olhos azuis, vestido branco enfeitado da mesma forma que o meu. Foi presente inesquecível de menina nota dez!
Tive meus pais, fui beijada e por eles acarinhada; pedi-lhes a benção ao dormir; mimada, fui princesinha. Fui índia e conquistei a floresta do jardim da nossa casa. Fui canto, encanto e alegria. Quase morri afogada e fui salva por meu pai, depois de lançar para os ares, minha frase em suspeição: "Adeus, mundo cruel!" No quintal, subi em árvores e de uma caí, perdendo a fala no tombo; em vertigem, dirigi os carrinhos rolimã dos meus irmãos bem queridos. Com amiga de olhar negro, pele negra e brilhante, pulei corda bem trançada em cipó verde do mato. Lágrimas corriam pelo rosto, ao deixarmos os irmãozinhos no Jardim da Infância de outrora. Vivências, que nunca esqueci...
Sorri para a vida e da vida não ri. Cabelos longos ou curtos, pernas ligeiras, fogosas de bem torneadas, rolei em morros de pedra, chutei água em poça d'água, pisei descalça na lama e cheirei cheiro das rosas dos jardins da minha terra, bela terra onde nasci.
Briguenta,
sardenta,
magrela,
banguela
e levada...
mais parecia... mais parecia um menino todo queimado de sol.
Mamãe dizia medrosa:
“Tua pele ficará enrugadinha, vais ver!”
E, feiticeira, seguia desafiando essa trama,
tostando a minha ilusão naquele sol escaldante.
Única tristeza tive quando menina pequena: a morte rondava, à espreita, para levar minha mãe. Na escola do Seu Leopoldo, quinta série eu cursava. Sentava pelas escadas, olhando bem lá para longe o hospital todinho branco e tão grande, esperando-a aparecer, na sua roupa comprida, para o frescor da manhã... Minha mamãe não sabia, mas ficava ali, sozinha, sem brincar, esperando para vê-la - viva e bela, bela e viva!
Foi esse o grande infortúnio do meu devaneio infantil.
Mamãe retornou para casa e reviveu nos seus versos.
Ganhei nova mãe e mãe-poeta!
Sonhei...
Sonhei...
Sonhei tanto e tão grande...
cresci sonhando ao dormir,
dormi sonhando acordada!
Adolescente feliz!
Fui irmã bem encrenqueira, prima linda e afago em neta! Toda noite, bem mais cedo, recolhia-me a dormir, vestindo pijama em flanela cor de lua e quimera. Lembro-me bem... uma história abissal, tão enorme e tão sem fim... A cada noite, um episódio... ansiava o anoitecer! Via-me, então, raptada. Naquele exílio, a fogueira crepitava de tristeza, eu deitada e seminua, pele doce e perfumada, pele doce e bronzeada. O moço forte e sem rosto saciava minha fome, cuidava, sorria e beijava os lábios virgens de mim, com beijos desconhecidos da minha realidade... Quantas vidas eu vivi! Extasiada, enlevei-me; fui sonho e fui sonhada!
Meu primeiro namorado foi um príncipe encantado: loiro e lindo, meigo e doce... Dançamos Se piangi se ridi, dei-lhe meu primeiro beijo, chorei ciúmes doridos e esperei, sempre ofegante, o galanteio sob a forma de assobio, quase toda madrugada, fazendo-me serenata: Io che non vivo senzate. Pela exaltação do meu pai, esse amor foi separado. Sofri e chorei de tristeza. Minha irmã reconfortou-me. Descobri a vil saudade do beijo jogado e perdido nas gramas dos meus caminhos. Do beijo, nasceu a poeta. Da poeta, o sonho de fêmea. E, nesse ritmo sensual, minhas mãos correram soltas no meu verde acordeon. Desfilei minha beleza numa longa passarela, ao sonho da multidão. Estava bela e dourada! Desse ouro, renasci... e vi meu sonho enlaçado a novo amor impossível. Desta vez, foi meu fervor, braço forte e lutador - um platônico amor!
Mas, se tive amor, fui feliz!
Ah! Bom seria não ter isso a escrever! Pela minha adolescência, conheci morteiros ferinos - senti dor, medo e suspeita: foi-se o vovô italiano, tão viril e tão azul e, foi-se embora também, meu irmão olhar de estrela, o caçula apaixonado.
Tempos depois, retomei o que nunca esquecera - meu primeiro namorado. Aos 18, prometi-lhe amor eterno, ao dançarmos enlevados ao som de Romeu e Julieta... Separados, novamente - o estudo nos chamara. Cada um para o seu lado, entre cartas e lembranças. Mas, nas flores da virtude, rompi as juras de amor e os seus lábios magoados desferiram triste fado: "Não serás jamais amada, como assim te amo então."
Coincidência ou maldição: nunca mais refiz beleza nessas coisas do amor.
Fiz-me mulher e sofri.
Resolvi adormecer...
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Fui mãe!
Exsurgiu minha fé!
Vi fulgor e negritude!
Quando acordei, bem mais tarde, não tive as bonecas de outrora, mas vi barriga crescida desabrochar toda em flor, trazendo meninos dourados a me chamarem de mãe. Por três vezes, fui mamãe! Feliz, no choro encadeado. Feliz, nas cacheadas molduras dos rostos cor de romã. Feliz, na ilusão do olhar, no mar do sorriso de amar. E, nesse enlevo pureza, ao descobrir minha fé, fui aprendiz da esperança.
Aos pesares de um fadário, quase os perdi, inocentes! Sem a presença diária dos meus sonhos de amor... ah!... letal incongruência - fui feliz... mas, infeliz! Feliz, às chegadas; infeliz, nas despedidas. Inocente e aparvalhada, submergi na mentira desleal do desamor. Perdi-me nas brumas do amor. Dancei a saga dos ventos. Fui Pégaso sem luz e encanto. Reinventei a escuridão. Roubei a magia dos magos, subi a pé para o céu, mas fui jogada no inferno e lambi os ossos podres do demônio em furor. Busquei Zeus no Panteon, mas detive-me em Hades. Fui langor em sedução, nácar e gosto de lodo. Quis ser Hera e fui Perséfone. Registrei temor da noite, mas do sol guardei a pujança. Sorvi mel para acalmar meus desejos incontidos, mas no fel evaporei. Bateu-me na cara o destino. Fui angústia e solidão. Abandonei a oração.
Foi preciso adormecer...
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Refiz a mãe, fui profissão e mulher!
Levantei-me, vestida de professora, de respeito e de saber. Agarrei-me aos filhotes e completei as lições que faltavam nos meus dias... Tornei doce o meu olhar. Alimentei-me de amor. Reacendi a guerreira. Fui real e virtual. Embalei-me na esperança! Mas, o fadário insistente, maltratou-me em novo estilo - fui rainha sem poder e paixão sem ser mulher. Nas marcas do meu outono, marcou-me de roxo o passado.
Papai se foi e, com ele, parte da minha menina!
Insistente em minha faina de ser feliz, recuperei o femíneo em sua (e)terna expressão. Vivi anseios diversos, pautada em franco sentir. Os filhos no meu abraço, nada mais queria ter. Mas, o viver repentino, malvado por natureza, roubou-me a flor do sorriso. Fui sonho sem expressão. Nem fui eu, nem fui ninguém. Só obstei o destino. Joguei fora o meu encanto e solucei doce canto. Fui desencanto e dor. Perdi num último som, minha leda fantasia. Meu efêmero se foi.
Foi urgente adormecer...
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Fênix!
Dominei acatastático destino!
Hibernei e acordei no Parnaso da oração. Escolhi a solitude. Ao ritmo cadente de um mantra, refiz sentidos da vida. Recuperei a beleza e a saúde interior. Não cobicei; fui cobiça. Guardei o frescor da vida, num canto da vida em revista. À beleza da emoção, refiz sons nas madrugadas. Fui real e virtual. Poetizei minha vida e meus amores. Fui beleza e fui promessa. Fantasiei, mas fui chão!
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Re-luto... aproximo e distancio. Mas, nas lides da razão, tudo ainda faço... por amor!
Sou mulher-mãe e professora, leoa-macho e bem-te-vi! Forte e frágil. Vida e paixão. Desengano meus enganos. Escamoteio as dores e os olores dos sentimentos de amor... (Será?!!)
Sou Direito e sou Poema. Sou as cores da palheta, a virgem tela, o pincel, o som grave ou agudo do meu belo acordeon. Gosto de mim, só por mim. Abomino a falta de sonho, a fleuma da apatia, a devassidão da mentira, o fragor da ausência de ética. Temo o rugido da ira. Sou fé e trago na alma um elegante teatro. Gosto de dengo e de sol, sou idílio sensual, Anêmona na Primavera. Minha idiossincrasia é o amor absoluto, sem o qual não sou deleite e nem sei me deleitar. Por amor eu faço tudo. Para o amor eu sinto tudo. Transmuto-me em simples violeta ou no mais selvagem beijo. Frente à paixão, sou amor, um amor em despudor. Frente à vida, sou furor, um furor no meu pudor.
Sou muita flor e ternura,
sedução e desafio.
Palavra quente - sou brisa,
esplendor e ventania.
Sou a dúvida e a verdade
e mais eu do que tu és.
Por amor fui tão feliz;
por amor, fui infeliz.
Mas, amei! E quanto amei!
Sem esse amor, não seria
a mulher que sou agora.
Eu não seria nem mãe!...
Sulcando da vida a incerteza,
amoldo-me enfim à certeza
de não mais adormecer
- fora de hora -
para então sobreviver.
No meu sonho ou realidade,
nada mais eu sacrifico -
sou prática da fé e esperança,
sou mãe-amor e desafio,
mulher-poesia e pintura,
sou musical no fascínio,
sou mestre-ardor por opção.
E, por ser assim intensa,
descubro-me em mim todo dia!
Retomo o leme do acaso
e reaprendo a viver!
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz