FILHA INCOMPREENSÍVEL
É como ser filho de branco e ter pele negra.
Não querer ferir o pai e, ao mesmo tempo,
não poder se omitir diante da estúpida intolerância branca.
É como ser filho de alemão e ter também sangue judeu.
Não querer ferir o pai e, ao mesmo tempo,
não poder fechar os olhos à enorme mancha nazista
que embalou a Alemanha um dia.
É como ser filho de judeu e ter abraçado o cristianismo.
Não querer ferir o pai e, ao mesmo tempo,
não conseguir deixar de amar Jesus e de desejar segui-Lo.
É como ser filho de conservador e ter espírito revolucionário.
Não querer ferir o pai e, ao mesmo tempo,
não poder abandonar a luta em que se acredita.
É como ser filho de banqueiro e ter vocação de artista.
Não querer ferir o pai e, ao mesmo tempo,
não poder desistir da arte nem por todo o dinheiro do mundo.
É como ser filho de um homofóbico, fechado em cega ignorância,
e ser homoafetivo. Não querer ferir o pai e, ao mesmo tempo,
não poder deixar de ser o que se é.
Mas é ainda pior. Pois, quase sempre
até mesmo o pai negro, o pai judeu, o pai cristão,
o pai revolucionário, o pai artista, o pai culto e aberto,
o pai liberal que se acredita isento de qualquer preconceito,
são incapazes de entender uma filha feminista.
E se magoam à toa, por se recusarem a receber
a córnea que ela tenta lhes doar.
Córnea que, ainda que não vejam ou não se lembrem,
eles mesmos ajudaram a gerar.