CRIANÇA

Criança não nasce sabendo nem nasce pura. Criança não é tudo igual nem nasce pronta. Criança já nasce com herança, é a soma da genética com diversos fatores ambientais, gestacionais, emocionais e também espirituais. Tem criança mais calma, e outras muito ansiosas e agitadas. Tem criança por demais agressiva e outras, uma minoria, mais amorosas. Tem criança alegre, outras tristes, outras pensativas. Enfim, a diversidade é enorme.

Criança humana nasce sempre dependente. Depende do adulto em tudo para sobreviver. Mas não é “tabula rasa”, mesmo recém-nascida já tem características de personalidade próprias. O que a difere dos adultos não é a ilusória “pureza”, é a confiança. Criança confia, porque não tem alternativa, apenas confiando no adulto de quem depende pode conseguir sobreviver.

Criança, no geral, é egocêntrica, deseja toda a atenção do adulto com exclusividade para si a fim de se sentir segura. Não sabe partilhar, nem sabe amar, tem potencial para isso, mas precisa aprender. Só sendo cuidada, amada e ensinada por algum adulto, que lhe coloque os limites apropriados, é que conseguirá aprender a respeitar, a dividir e a amar, do contrário, comumente se torna um pequeno vampiro de energias alheias e, mais tarde, pode se transformar em algo ainda pior. Fazer tudo o que uma criança deseja e cisma, satisfazer todos os seus caprichos, não é amá-la, é bem o oposto, é deixá-la sem rumo,é ignorar suas necessidades, é aprisioná-la para sempre num egocentrismo imaturo, é impedi-la de crescer e de aprender a amar.

Ser criança, isto é, manter nossa criança interior, é manter nossa capacidade de confiar uns/umas nos/as outros/as por reconhecermos nossas limitações, nossa incapacidade de vivermos sem os/as outros/as, nossa dependência mútua e universal como seres humanos. É também mantermos e alimentarmos a capacidade inesgotável para aprender e para sonhar, bem como o deslumbramento com o novo, combatendo o medo do mesmo.

Auto-suficiência exagerada, arrogância e desconfiança não combina com ser criança. Ser criança rima com esperança, com aprender a tolerância, com corações capazes de se entregar, com musica, com dança, alegria, imaginação, brincadeira, festança. Ser criança rima com bagunça, energia, cores, fantasia, histórias, cinema, sorvetes, chocolate, colo, abraços, perguntas, explorações, lições, brigas inconsequentes e sonhos inocentes.

Mas é preciso também reconhecer que, em nosso mundo, criança tem rimado com muitas outras coisas diferentes disso tudo. Por exemplo, com violência, com matança... Bebezinhas assassinadas ou abortadas na China, na Índia, na Ásia, na África apenas por serem meninas. Garotas violentadas e prostituídas por todo o mundo, jogadas e ignoradas em abismos profundos. Menores abandonados e assassinados nas ruas em noites muito mais que escuras. Crianças que sofrem no presente, no passado, na história, tratadas como inferiores, sub-humanas, escórias... Mortas nas guerras, nos tráficos, nas crises, nas carências, nas políticas econômicas, nas crises sociais, na indiferença. Pequeninas e pequeninos transformados em monstros pela permissividade e omissão dos pais, da família, dos responsáveis por sua educação. Outros/as surrados/as, agredidos/as, humilhados/as, explorados/as, viciados/as, esfomeados/as, vítimas da ação, do silêncio, do sadismo, da inércia, da hipocrisia, da covardia de todos/as – inclusive dos/as que acreditam não serem culpados/as.

Criança precisa de amor e carinho, mas quantas não terminam rimando com dor, menina angustiada ou menino sozinho ? Criança precisa de limites, de noções e aprendizagens, mas quantas não terminam rimando com indiferença ou mimos estratosféricos que as egolatrizam e desumanizam ? Criança precisa de segurança, mas quantas não rimam com aflição e desesperança ? Criança precisa ser feliz, saudável, viva, forte, mas quantas não rimam com opressão, frio, fome, morte ?

Ah, mas não é preciso responder, pois as respostas já são muito bem conhecidas, mesmo por aqueles/as que fingem não ver. Assim, fica agora apenas uma questão, pergunta de última hora: será que neste nosso planeta, com anos às centenas, nunca haverá gente grande com coração de gente pequena, que, apesar de toda dificuldade, transforme essa tão dilacerante realidade e,após longa andança, finalmente consiga rimar com criança ?