Devaneio em linha reta durante uma noite fria e estrelada
Eu nunca deixo de me suicidar. E a cada nova volta do sol, ergo louvores ao seguimento das dúvidas. Pelo menos dez vezes ao dia, me enforco nas cordas intermináveis, indestrutíveis, atraentes e esnobes do cotidiano atroz. A cada novo despertar ou durante todas as insônias, eu me jogo de todas as pontes que ousam surgir em meu caminho ou em minha inércia. Eu me direciono até onde existe a possibilidade da bala tornar-se útil e não envengonhar-se por perder-se. Engulo todas as espécies de pílulas (miraculosas, mágicas, aliviadoras e outras) em quantidades suficientes para alcançar o que há depois do milagre, o que há por trás da magia, o que supera o alívio. Mas isso é só uma parte do meu reflexo no mar desconexo onde mergulho e me espelho. Muito de mim flutua suave pelos ares purificados por uma otimista visão do solo compartilhado. Grande parte do que sou ou aparento é composta por dentes gentis, ainda que restaurados, e por lábios, febrilmente, adaptados. Tenho muita coisa vibrando, cantando, crescendo e, principalmente, desejando. O desejo corre, grita e multiplica-se dentro de meu sólido objeto inseparável. O desejo é minha maldição, minha herança e minha fé. É meu martírio e meu amigo. Minha companhia sem alternativa. Ás vezes me obrigando à ansiosas rupturas que me levam ao falso ‘desejo’ de eliminá-lo (pelo menos, provisoriamente) para, assim, ter algum sossego. Porém jamais esqueço que é ele quem me dirige aos cumes mágicos das montanhas celestiais do surrealismo vivo, e que também é ele quem enterra meus pés num sólido chão de exaltação ao meu e aos nossos egos e desapegos (habilidosos e geniais porque beiram a perfeição inexistente). Mas, seja da forma que for, a imensa maior parte do tempo é preenchida pelo vazio, pela espera, pela apatia, pela indiferença, pela letargia, pela contemplação patética, ou seja, pela nossa maior característica: a insuperável ignorância. Não me entenda mal. Eu me amo. Eu me amo e, depois, nos amo. Chego quase a me sentir doente por carregar comigo tamanha admiração pela humanidade. Sim senhor, os seres magníficos (eu sei em qual sentido) quase me fazem esquecer da massa burra amavelmente estuprada e dos líderes destruidores de sonhos de reconstruções. Sim senhor, pois eu sei que só os que ficarão serão os destinados ao eterno, que souberam entenderem-se provisórios. Sim senhor, pois aqueles que pareciam que deixariam suas marcas pestilentas por tempos assombrosamente gigantescos, até o limite dos zeros e das repugnantes mordomias à forceps, serão eliminados de seus casulos de verdades e postos em seus devidos buracos, onde seguirão sem seus velhos disfarces e assim sentirão o choque de suas insignificâncias diante daqueles que insistiram em seguir com a dúvida.
31/05/2012