QUEIME DEPOIS DE LER

hoje resolvi escrever... as palavras relutam em vir ao papel... não, nada com aquela inspiração tantas vezes usada de escrever algo sobre a própria falta de inspiração... as palavras existem onde foram criadas, em meu pensamento... e quem me conhece está cansado de ler que penso muito, e que tenho preguiça de escrever... mesmo em minhas fases mais profícuas, de dez poemas que componho em pensamento, apenas um ou dois chegam ao papel... sou como o sedentário, o clinomano, fico confortavelmente instalado em minhas perturbações, minhas digressões, ilocutório sempre, sempre na pretensão... eu não perco a inspiração, não concedo como isto há de ser, um artista sempre tem a arte, e esta é múltipla, dinâmica, convidativa... não há um modo único de se expressar, não há fórmulas, regras, limites... e nem precisa ser um Jorge Mautner, um Oswaldo Montenegro, um Roger Walters, que nem cria mais, só recria roteiros e efeitos visuais e é sempre estarrecedor... então é isso, se não escrevo não é porque falte inspiração, falta motivação, o que me impede é o tédio, é pensar que vou falar algo para muitos adiáfaro, às vezes até para mim, que não sou nenhum Gogol, nenhum Caeiro, e tendo a ser prolixo, Aristotélico... não escrevo, ninguém sente falta (voce sente, eu sei, mas a intenção poética pede dramaticidade), não sinto falta de ninguém (mentira, sinto sim, e muito) – já estava a retirar esta frase, porque alguém pensará que estou carente e não estou, ou estou sim, carente de carência, que em pensamento eu me completo... ah, Regina, também Vinicius fala da insatisfação do poeta, e se compadece, “Pois, individualmente, o poeta é, ai dele, um ser em constante busca de absoluto e, socialmente, um permanente revoltado”, mas o tédio não me deixa estar insatisfeito comigo, por isso sou pleno, tenho o olhar poético e a indignação e a tristeza, mas não sou triste, nem me manifesto, nem poemas faço... pleno de tudo o que há por existir, já escrevi antes... não escrevo mais, poucos são os que me leem com os olhos com que escrevi, esta é a liberdade da poesia, ser nova para o leitor, mas somos muito distantes, e preciso de alguém por perto, não da pele, nem do peito, preciso de alguém perto da mente, alguém que se preciso mentir, o saiba fazer, que se preciso fugir, deixe a porta destrancada, que se preciso morrer, não se despeça... alguém que me acompanhe nesta racionalidade inútil... tem movimentos inexoráveis em curso, sentir amor ou compaixão ou angustia não mudará os acontecimentos que ainda estão a acontecer... por isso a gente se torna cínico, indiferente, indolor... ontem jantei frugalmente ( para repetir um estilo antigo, não o de comer, o de escrever)... duas sobrecoxas de frango e uma espiga de milho – primeiro veio a recordação daquele sítio em Arealva, em que colhíamos as espigas de milho verde e as trazíamos enroladas na camisa, para assar no quintal num fogareiro improvisado com quatro tijolos, enquanto lá dentro um fogão à lenha ardia todas as horas do dia... ah, Gustinho, esteja onde estiver, e é em lugar nenhum, há de saber, hoje, o quanto a inocência nos era cara – depois da lembrança melancólica veio a melancolia em si, aquela que sempre acompanha a percepção das coisas... quanto valia o que eu comi ontem? no meu prato, uns três reais, no atacado, não mais que um real... e nem eu nem você, aí, com sua gorda barriga burguesa fartamente abastecida, nos incomodamos que neste mesmo momento, em nossa cidade, em nosso país, em nosso mundo, são muitos os que choram por fome... escrever para quê? incomodar? aliviar? não há alívio, tendemos à queda, os que nos veem caindo dizem, eles são assim, os que não enxergam são nosso estofo, e o motivo do choro, com aquela cara de riso que temos quando a piada é falsa e a dor verdadeira... o que dói em mim que não dói em ti? o que é dor? ah, por que justamente hoje tinha eu de escrever? hoje que meus olhos castanhos esverdeados estão vazados, e meu ouvido inflamado, e tenho manchas vermelhas pelo corpo e uma ferida nova no peito... e não quero falar deste desespero, deste desamparo, deste medo... não peço um dia novo, menos ainda os velhos, os dias que aconteçam como tem de ser, ou deixem de acontecer, ninguém há de se aperceber se hoje morrem mil crianças e amanhã morrerem mil e uma... eu também cometi o crime de fazer uma criança nascer, eu mesmo nasci, não posso retroceder... deixemos assim, hoje eu escrevi e nem queria escrever... tem gente (gente?) que não quer pensar e não pensa, não quer agir e nada faz, não quer ser e torna-se sombra, e diz ser feliz... tanta paranoia, eu só penso em algo para não pensar... aquela passagem de O Perfume em que todos estão aguardando o enforcamento de Grenouille e ele (observem esta construção, as cinco últimas letras são quatro e’s e um ele, e o pronome é o mesmo deste substantivo... tanta coincidência, que não vou nem alterar) libera o perfume que produzira da essência das virgens, e o amor se espalha entre todos,e todos se amam libertariamente... é assim que não me canso de amar... só de escrever...