O QUE COLOCAR DENTRO DA MALA?
o que colocar dentro da mala
que já não esteja lá, e seja de fato imprescindível?
a mala está cheia, deformada, pesada
de tantas coisas acumuladas em uma única - e parca – existência.
comecei guardando os brinquedos que não ganhei naqueles natais todos,
nem nos aniversários nem no dia, da criança que fui,
depois vieram os ídolos do futebol, não guardei figurinhas, camisas, autógrafos,
guardei mesmo foi cada um deles, jogador de técnica ou de raça, que me deram os primeiros conceitos de plástica; “às vezes um drible é mais bonito que um gol”,
disse um deles, gênio que morreu ainda menino.
comecei a guardar livros desde cedo, e me guardava também dentro deles; vivi cada história, fui personagem e autor, aprendi que sempre tenho o que aprender, o conhecimento eu não guardei, dividi com quem o quis, e fiquei sabendo de ainda mais,
e mais livros li, estão todos na mala, pesam demais na mente, tarde demais a gente descobre o quanto a ignorância é leve e os músculos efêmeros.
comecei a guardar músicas ainda moleque, meus genes boêmios fizeram a sua escolha, depois vieram os rebeldes, e guardo até hoje muito rock’n roll.
para quem acha que a gravidade atua sobre o heavy metal, relembro a história do nome dos maiores gigantes: Led Zeppelin, o Zeppelin de Chumbo, simbologicamente, algo pesado que voa. e Pink Floyd e Raul e Mutantes, entre tantos, estes eu precisava citar.
guardo fotografias mentais de tantas paisagens, rios que são mares, mares que são sertões, sertões que são secos e sua gente morre de fome e inanição;
cachoeiras, chapadas, montanhas, praias, cidades novas do novo continente, cidades velhas do velho continente, mais novas que as outras,
sem esgoto nas ruas, sem um carro amassado em cada esquina,
sem crianças que não comem, não estudam, não brincam,
só apanham.
tenho guardadas inúmeras fotos de olhares, a daquele homem que encontrei no restaurante à beira da estrada, de cócoras, uma lata cheia de farinha na mão, que comia com os dedos, a cabeça em pose altiva, direcionando o olhar para o nada,
um olhar sem dor, sem mágoa, sem desilusão, o olhar mais vazio que encontrei, e que me encheu de tudo o que lhe faltava.
guardei o olhar da amada, sentada sobre mim, rindo, um olhar meigo, excitado, cheio de versos e cores, um olhar de amor como nunca mais senti, por isto não vi seu olhar quando você partiu.
levo esta mala tão cheia, que já não sei o que mais colocar. para caber tudo o que há, tirei muita s coisas, alguns amigos que sorriam amarelo,
deixei os que não sorriam, os que beberam e dançaram comigo, vadios, hoje eu os levo e eles me carregam por aí.
tirei muito dinheiro, que nem era meu, tirei todas as verdades, as religiões, para não correr o mesmo risco de Pandora, antes de tudo tirei a esperança,
tirei proveito das putas e dos açoitados, dei carinho em troca de um pouco de despudor e aceitação.
guardei muita vida nesta mala, e quanto mais guardo, menos vida fica, menos vida me resta,
paradoxo insofismável este, por que a vida é reta e objetiva, e é assim que estarei, quando você me vir, curvado, saberá que não é devido ao peso da mala que carrego, é o peso da própria vida que jamais reneguei.
o que colocar dentro da mala que não pereça com o tempo? versos, meu amor, é só que ainda tenho.
nem são mais versos rimados e métricos, que na mala não guardei manuais de redação e estilo, agora mesmo escrevo uma prosa com forma de poesia, ou amorfa, ou teoria.
faço isto para rir, porque o riso não se guarda na mala, se espalha; faço isto para ir, sempre ir, porque a mala pode se extraviar e ficar perdida nalgum armário, mas o poeta vive de andar no imaginário, de navegar, de fingir que é livre.
o poeta! vou colocar o poeta dentro da mala, só assim ele saberá como me sinto...
PARA THAÍS FALLEIROS, que nos convidou para brincar.