o que são sonhos? perguntou o fantasma vivo dos mares. sonhos, respondeu-lhe a escuridão, àquela que tudo sabe, são manifestações que cada poeta sente diferente. o romântico sente manifestações da alma, os realistas sentem manifestações do cotidiano, os surrealistas chamam de metalinguagem, e sentem manifestações do inconsciente, aprendidas que foram com o médico vienense; os ascetas sentem manifestações do futuro, e os charlatões, estes lêem nos sonhos um irrealizável futuro.
 
o que são sonhos, oh escuridão, tu, que tudo sabes, o que são sonhos para as moças que dormem dentro do próprio coração? ah, fantasma marinho, estes sonhos, eu, que sei tudo, não sei o que são. dentro de um coração de moça, em que a própria moça dorme, eu não entro, ali há apenas luar, não existe escuridão.
 
quem me dirá? quem haverá de saber? desesperou-se o fantasma vivo do mar. luar, ô luar, venha me dizer, já que és tu quem entra por lá. eu entro, disse-lhe o luar, mas não saio. sou sorvido, sirvo de alimento e também de manto, dou-lhe banho e alucinação (a lua é o LSD dos poetas, esclareceu-me o Quintana), porém quando ela sonha, não é comigo, não sei de que são feitos os sonhos da moça que dorme em seu próprio coração.
 
ela não sonha! quem disse isto? quis saber o fantasma vivo do mar. eu, a voz. como sabe que ela não sonha? ouvi um pensamento. que mais disse-lhe o pensamento? a mim não disse nada, foi a resposta da voz, estava de passagem e ouvi este pensar. que mais ouvistes? gritava o fantasma. nada, sou uma voz, não sou ouvido, aliás, nem devo ter escutado, estou só a repetir um pensamento qualquer.
 
o fantasma vivo do mar esteve a ponto de afogar-se nas águas de que era feito, águas mortas, para deixar bem claro, que se fossem águas-vivas, ele não seria fantasma. dizer que ele era vivo é assim uma maneira de fazer o fantasma existir, porque fantasma morto é pleonasmo, um vício que contaminaria todo verso desta prosa.
 
o pensamento, condoído daquele ser flutuante e abissal, veio-lhe em socorro. quando eu ainda era náufrago, disse o fantasma, enviei um s.o.s. em ninguém me socorreu. eu estava ali, pensou-lhe o pensamento, mas tu me afugentastes, para poder naufragar em paz, sem pensamentos sombrios do que lhe aguardava, e aconteceu. deixa prá lá, que bom que agora estejas aqui, já sabes o que quero saber. sei e não sei. não entendi. sei o queres saber, mas não sei a resposta. ai, ai, ai, passa-te daqui, ô inútil, vem ainda tripudiar de meu frenesi? acalme-se, fantasma vivo, que é capaz de morreres novamente. vim para dizer-lhe que a moça que dorme dentro do próprio coração não sonha (por isto não sei dizer-lhe sobre sonhos), fica ela ali, quieta, a ver navios no horizonte e pensar besteiras incontidas.
 
que besteiras incontidas são estas? mudou o objeto de inquisição o fantasma vivo do mar. tu sabes, ó pensamento? isto eu sei, afinal, já lhe disse que fica a pensar estas tais besteiras, não a sonhar. então me diga. jamais. sou pensamento, não sou voz, e mesmo que fosse, acho que ela não falaria. talvez um dia faça um verso, que besteiras assim são fontes de poemas, talvez guarde apenas para si, porque tu se te importas com as besteiras, ela só se interessa pelo navio lá no horizonte, perto de desaparecer entre o céu e o mar. é lá, ó fantasma, naquele navio, que está o coração da moça que dorme em seu próprio coração.