LOKI

Em meio à minha primeira catarse, lá se vão uns 20 anos, adolescente que prefere se manter (“minha normalista linda, ainda sou estudante, da que vida que quero dar”) a loucura no auge, conferi à música o instrumento e os meios que havia me levado ao fundo do poço sem fundo.

Era um pensamento assim: tudo o que conheço, pessoas, locais, coisas, livros, idéias, ideais, surgiram depois que conheci o rock and roll, inclusive meu envolvimento com o aquilo que o Sá e Guarabira, em carta ao pessoal do Terço, chama de Movimento da Música Popular Brasileira.

E me convenci a desfazer-me de tudo o que me ligava à música e às palavras, a começar dos próprios livros e dos discos. Primeiro foi uma entrega. Entreguei ao Joanilson a coleção do Raul, que ele mesmo é quem havia formado, disco por disco, nos idos de 70; ao TC, os discos do Jorge Mauttner, para quem ele tocara baixo na memorável apresentação deste maldito no festival de Águas Claras, em 83. Eu estava lá... A Amelinha ganhou um Garotos Podres, o Quiel ficou com aquele disco do Língua de Trapo, o segundo deles, autografado por toda a primeira formação do grupo, lá em Itápolis, e que depois o Laerte aproveitou para gozá-lo ao final de um show:”ah, você tem este disco, acho que é o único, nem eu mesmo tenho...”

Assim foram quase todos os demais, Zé Ramalho para o Marquinhos, Zé Geraldo para o Toninho, a Diana Pequeno para a Soninha, os Montenegro para minha irmã, que os acolheu como o céu acolhe as estrelas, a coleção do Camisa foi dividida, uma pena. Sim, dói, até hoje quando recordo cada capa, cada música, cada momento que ouvi, só ou com amigos, àqueles discos, dói ter-me separado deles. Paguei um preço alto por tentar controlar minha insanidade.

Mas a história não é esta. Era apenas introdução, pois sobraram uns discos que resolvi vender, entre eles Loki e Singin’ Alone, do Arnaldo Baptista. O cara do sebo não quis, não adiantava comprar, não venderia. Ainda se fosse um Mutantes, mas Arnaldo solo, ninguém queria, ninguém conhecia...

Este mutante da música, da vida, da arte, de si, continua assim, quase anônimo. O Mutantes reapareceu por instantes, sem a Rita, lá em Londres, aqui em São Paulo, e agora aparece Loki, um documentário dirigido por Paulo Henrique Fontenelle com o colorido daqueles moleques, com a sensibilidade e a emoção que estavam presentes na criatividade e intensidade do grupo, com depoimentos comoventes, históricos, de protagonistas desta história.

Existem pessoas que se comovem com o trágico, por isto os jornais focam tantas cenas de desastres e dor, tem pessoas que se comovem com o sentimentalismo, o sucesso das tele-novelas o comprova, tem gente que não se comove; eu me comovo sim, choro, fico com o peito apertado, o coração pequeno, a voz embargada, toda vez que sinto, percebo, compartilho, aquilo que faz do homem mais que um humano: a genialidade.

Assistam Loki, a música brasileira de vanguarda (vanguarda da música mundial), a arte pura, virtuosa e primitiva, a condição humana, o artista e a pessoa Arnaldo Dias Baptista merecem este conhecimento (e o reconhecimento) e esta homenagem, que nós, espectadores, admiradores, fãs, temos de aplaudir, agradecer, e alguns, chorar, porque a arte existe, e o gênio está entre nós.