CONVERSA EM PROSA E VERSO






Numa casinha rústica e modesta.
De família simples. Trabalhadores.
De perto presenciamos a conversa
Dos seus interessantes moradores.
Que falavam em prosa e verso
Como naturais trovadores.


Dona Antonia, mulher altiva e forte,
Muito esperta, de porte avantajado
Tendo sotaque brejeiro. Do norte.
Pedia de fora, ao marido que sentado
Dentro da casa só reclamava da sorte.
Respondia mansamente e compassado.


- Abre a porta você mesma, oh! Toninha,
- Porque eu agora estou muito ocupado
- Estou olhando, pricurando a vassorinha,
- Pra limpá tudinho aqui do lado.
- Quero deixá limpa a minha cadeirinha
- Pra achar meu óclo do vidro quebrado.


- Se os meus óclos não achar loguinho
- Podemos nele pisar e amassá o danado.
- Não consigo lembrar onde tá o danadinho
- Num sei onde eu puis. So muito discuidado.
- Assim que eu achá os  meus oclinhos
- Posso te dar mais atenção e cuidado.


Com pressa dona Antonia procurava
As chaves da casa para nela entrar.
Não vendo o que do seu lado se passava
Virou-se e viu o vizinho rindo sem parar.
Ficou mais nervosa e encolerizada
Por não achar as chaves no lugar.

 
Vasculhando em um vaso pequeno
Que ficava encostado na janela
Sabe?  Aquele que de tudo ia enchendo?
Chaves, vidros, canetas, até flanela?
Dessas de secar a água escorrendo,
E melhor se olhar para a rua e a viela.


Achando as chaves ela entrou depressa
Agitada, ainda em pé foi logo falando
Sem esperar o marido se ligar na conversa
Irritada foi logo o seu vizinho xingando.
Com as mãos tirando os cabelos da testa
De uma só vez foi se esbravejando.


- Esse vizinho inda me paga. Sem graça.
- Num imagina cum quem ta se metendo
- Safado num tem que fazê. Vive de trapaça.
- Num trabaia. Sabe Deus, do que tá vivendo.
- Si eu me infezá e pegá lhe istoro a cabeça.
- Só cum meu tapa vai fica todo ardendo.


- Binidito, meu bom marido, escuita essa
- Novidade que lá do arraiá to trazendo,
- Num fique ai no chão. Óia depressa,
- Lamuriá num é coisa de se tá fazendo.
- O Pedrinho pode ajudá pricurá o que resta
- Dos teus oclos. Chame e ele vem correndo.


 - Ocê fica ai o tempo todo só drumindo
- Num pode do que assucede se assuntá,
- Nossa casa intão pode inté tá caindo,
- Qui ocê num qué nem sabê. Nem bola dá.
- Despois reclama que eu fico só saindo
- Sem imaginá o que to fazendo pra ajudá.

  
- Escuita a novidade que tá acontecendo
- Lá no centro da cidade, no nosso arraiá
- Sabe o fio do Abade, que saiu dizendo?
- Que nunca mais ia vortá pra esse lugá?
- Ele vortô bem depressa, inté correndo
- Trouxe malas, muié e fiios. Vortô pra ficá



- Assim com toda traia e com a fiarada,
- Tá rico. Veio inté cum belo carrão.
- O tar rabo de peixe. Cor avermeiada.
- Oiando de perto o povo qué ponhá a mão.

- O véio Abade todo prosa com a netaiada
- Cumprimenta todos, fala com um cão.


- Lembra quando o turquinho foi imbora?
- Que ninguém foi se dispidi dele na estação?
- Como vortô com jeito de rico la de fora
- O povo bobo óia prele como um tubarão.
- Binidito, lembrei do nome dele agora
- É o fiio do meio. Seu nome é Salomão.


- Pricisa de vê o jeito e a pinta do danado
- Parece um desses gaviões, tipo carcará
- Desse que pega a caça e leva depindurado
- Pros outros bichos dele num robá,
- Tá lá na praça, bem vestido e engomado.
- Num disque-disque cumprido. Baita tralalá.

- Num me lembrei ali, o nome do safado
- Tive vontade de ir lá e lhe dá um bofetão.
- Quando cheguei bem perto se virou de lado
- Si mexeu, oiou e fez que num me visse não.
- Ficô cum medo de ali mesmo ser cobrado
- Do que nos deve, que num qué pagá não.


Seu Benedito coçou a cabeça e comentou
Com seu jeito de caboclo bem educado:

- Foi muito bom que esse sujeito voltou.
Disse tranqüilo e com serenidade.
- Penso até ir lá dizer a ele que aqui estou
- É bem capaz que ainda esteja lá sentado.

- O que lhe emprestei já tinha esquecido,
- Nem tinha esperança de um dia receber.
- Saiu daqui, num sei onde ficou escondido
- Nem ia adivinhar que agora o pudesse ver;
- Por certo de onde ele estava foi banido
- Toninha, foi boa a notícia que vistes trazer.


- Penso cá comigo: devo ir vê-lo na praça?
- De repente a gente pode arrumar confusão.
- Ele pode me aborrecer e me fazer pirraça
- E arranjar um jeito da  gente  perdê a razão.
- Se for lá vou mostrar que não nego a raça,
- Daí terá desculpa para não pagar mais não.


- É difícil receber dinheiro emprestado
- Para gente ruim. De famiia de ladrão
- Eu fui pelos bons amigos bem alertado
- Ninguém daquela familia presta não.
- Ah! Se o turquinho voltasse mudado!.
- Bobagem. Não adianta alimentar ilusão.


- Para cobrá-lo tenho de ser calmo e educado.
- Mas se ele me vier  dizer que não vai pagar,
- Contarei para o meu compadre delegado;
- O doutor Pedro Bento poderá me ajudar.
- Também vou deixar nosso juiz  inteirado
- Assim o embrulhão não poderá mais escapar.

 
Bem tranqüilo, da cadeira se levantando
Coçou a cabeça e olhou para sua mulher.
Ela então, o seu marido foi incentivando
Falando assim: "to aqui pro que der e vier".
Ele sereno e com voz baixinha, resmungando
Sem sotaque recitou: "seja lá o que deus quiser".

- Pra me pedir emprestado, veio aqui correndo,
- Mas para pagar acho que ele não virá não.
- Pode ser que onde vivia também esteja devendo,
- Do seu Rabo de peixe não pagou a prestação.
- Não vou lá ver esse sujeito, pois estou vendo,
- Dinheiro que é bom acho que ele não tem não.


- Não vou lá para não mais me aborrecer.
- Estou bem aqui e não quero morrer do coração.
- Se a gente for paciente um dia podemos ver

- Ele parar de vez com toda essa esnobação.
- Não ficará por ai de carro para aparecer,
- Irá pra cadeia algemado e num camburão.


- Se nosso dinheiro tivesse dado a um pobre,
- Não teria hoje essa grande decepção,
- Como emprestei pro turco de família nobre
- Tenho que aceitar calado toda ingratidão.
- Espero que a providência divina o cobre,
- Minha esposa querida, hoje aprendi a lição.









Nota do autor:

 
               Certa vez, há mais de cinqüenta anos, eu e a minha família viajamos para o interior de São Paulo. Lá nos hospedamos, a convite, na casa dos amigos dos meus pais.
               Cidade pequena e simples, porém muito bonita, com lindas e pitorescas paisagens. Quem conhece o interior do Brasil, sabe que nas cidades pequenas os seus habitantes se comunicam a todo instante. Todos conhecem todos e sabem de tudo o que acontece, bem como da vida um do outro.
               As notícias, boas ou ruins, voam instantaneamente, uma velocidade absurda. E isto naquela época, quando a televisão era um privilégio de poucos. Os meios de comunicação extremamente primários. Até precários. No rádio, por exemplo, você ficava sabendo o que havia acontecido há um mês atrás. Imaginem hoje em dia, com toda parafernália eletrônica dos órgãos da imprensa falada, escrita e televisada, como seria.
               Após os abraços e cumprimentos fomos confortavelmente instalados num gigantesco quarto de hóspedes. Dali em diante todos os dias que se seguiram à gente saía a passeio em algum lugar. Íamos aos verdes campos, bosques, jardins, cachoeiras ou então visitar e conhecer os amigos dos nossos anfitriões.
               Numa dessas visitas que fizemos a determinada família, entre uma conversa e outra, um café com bolinhos, boa prosa com aquele pessoal amável e simpático, o assunto rumou-se para a história que poeticamente tentei narrar.
               Naquele tempo, criança como eu não participava normalmente das conversas dos adultos, salvo em casos ou em ocasiões muito especiais. Por isso ali no meu cantinho, meio escondido e bem quietinho, eu ouvia tudo e ia mentalmente gravando o que conseguia ouvir.
               De volta à nossa casa em São Sebastião passei para o papel tudo quanto pude observar e ouvir. Guardei com o propósito de um dia usá-lo, pois já naquela época adorava escrever. Principalmente sobre coisas e pessoas que via com interesse.
               Anos depois, aproveitando para treinar na máquina de escrever do cartório onde eu trabalhava, datilografei o texto cuidadosamente.
               Quando surgiu a oportunidade, busquei esse material para escrever o conto-poesia que vocês acabam de ler.
               Sempre que possível volto àquela cidade. E toda vez que lá estou me recordo com saudade e muito carinho dos acontecimentos aqui relatados em forma de poema. Aliás, ela é a minha segunda cidade do coração. A primeira sempre será a querida São Sebastião, que considero ser a MAIOR CIDADE PEQUENA DO MUNDO.
               Na minha infância São Sebastião tinha mais ou menos 5.000 habitantes, entre o núcleo central e o perímetro urbano. Entretanto, nas férias escolares de janeiro e julho, crescia e ficava quase dez vezes maior. Isto ainda ocorre atualmente. Tem uma população fixa de aproximadamente 70.000 habitantes e nas temporadas e no carnaval chega a acolher mais de 300.000 moradores turistas.
                    CONVERSA EM PROSA E VERSO escrevi em 2001, quando estava estudando técnica de escrita, simetria e declamação de poesias, com o meu amigo poeta Ibrahim Cury. Em seguida fui convidado pelo professor Ibrahim para participar de um concurso de contos e poesias com apoio cultural da Secretaria de Cultura de Guarulhos.
               Não tendo nenhum outro texto a não ser este, eu o inscrevi. Pra minha surpresa obtive entre outras 62 obras concorrentes, um honroso 9º lugar Tendo em vista que era o meu primeiro trabalho nesse seguimento achei ótima a colocação.
               Nesta nota, que há bem da verdade é uma crônica, deixei de citar o nome da cidade, bem como os nomes reais dos seus personagens, para não comprometer ninguém. Isto porque alguns deles ainda vivem e está morando no mesmo lugar.
               Procurei traduzir da melhor forma possível à linguagem e o sotaque brejeiro do povo daquela região.
               Conversa em prosa e verso é um conto-poesia a partir de um acontecimento cem por cento reais. Tive a oportunidade de conhecer todos os seus integrantes. Estive na estação. Vi o automóvel da história. Conversei com a pessoa e tudo mais.
               Neste conto que escrevi espontânea e despretensiosamente não apliquei nenhuma técnica especial ou simetria. Nele existem versos de até quinze silabas. Preocupei-me mais com os detalhes e nuances dos personagens em si. Os versos em sextilhas, rimam da seguinte forma: o 1º com o 3º, o 2º com o 4º, o 3º com o 5º e o 4º com o 6º, bem simples e até primários.