Monólogo da chuva

O inverno chegou com seu manto brumoso, salpicado de solidão.

Minha alma veste-se de tristezas púrpuras.

Tristezas que são aldeias longínquas ao entardecer,

Onde sinos dolentes dobram remorsos insepultos

Que atormentam a tranqüilidade de quem sou.

Quem sou não se reconhece diante da nítida imagem

Que o espelho reflete: as marcas das ilusões desfeitas, dos sonhos rotos,

Dos desejos esfacelados, dos amores atropelados na contramão da vida . . .

As rugas são a fotografia 3x4 da solidão de meus dias . . .

Como espantar o fantasma da velhice, se está em minha cara,

Como uma tatuagem feita a ferro e fogo?

No avesso do espelho, eis-me outro:

Olhos negros que refletem saveiros

Que singram embandeirados para a imensidão das horas marítimas;

Tez morena que conserva o viço da primavera que não vivi;

Sorriso de cachoeira numa floresta de alheamento . . .

Tão bela e tão distinta de quem sou! . . .

Tempo implacável.

Inutilidade das horas mortas, passadas numa torre de abandono.

Mágoas penteadas na solidão do quarto envolto em penumbras.

Estilhaços de paixões platônicas,

Cortando o coração destroçado por tantas mesquinharias.

Meu coração é um albergue fechado, empoeirado e vazio.

Outrora fora tão alegre!

Outrora, sonhara com o brilho dos bailes,

Com o calor dos corpos bailando ao som de boleros;

As damas com seus longos vestidos de organdi,

Cabelos presos com um laço de fita e uma rosa vermelha, lábios carmim.

Tudo isso desfila diante de mim numa seqüência confusa e quieta.

Meu Deus, chove intermitantemente!

Olho a chuva com uma revolta pacífica,

Com um desconsolo resignado,

Com a alma vestida de ironias e cansaços inúteis.

Que inutilidade!

Embriago-me.

Faz tanto frio!

Caminho até o espelho:

Meus olhos perderam o brilho na contemplação do horizonte marinho,

À espera da embarcação que traria meu sonhado amor;

Minhas pernas reclamam as distâncias percorridas à beira-mar,

Na busca infrutífera de encontrar meu amor.

Perco-me pelos labirintos de quem sou

E encontro-me diante da outra no avesso do espelho.

Como a admiro! Como a odeio!

Ela rodopia vaporosa, em seu vestido de organdi, cabelos longos,

Rosa vermelha entre os seios arfantes, sorriso largo;

Transpira prazer e sensualidade.

Minhas angústias sem leme!

Sou náufrago no mar da vida.

Perdi a bússola com a qual me guiava.

Sou barco de velas rotas que jaz numa praia do esquecimento.

Meu nome é ninguém.

Sou a sombra de quem fui

E ando espectro de mim a vagar pelo cais oblíquo na madrugada nebulosa.

Quem me dera algum pândego, farrapo de gente,

Olhasse-me com olhos de enxergar-me para assim sentir-me viva,

Digna do interesse de alguém.

Viajo através das sombras, inútil transeunte,

Fantasma a errar, envolta na névoa das recordações

Que são chuvas de estilhaços sobre meu coração vestido de cansaços.

Faróis distantes, vida que se esvai em fumo na imensidão do mar.

A cidade é uma selva de concreto em sua verticalidade concreta

Que me sufoca, que me oprime, que me apouca.

Caminho por uma longa avenida ladeada de luzes de néon,

Levo comigo a nítida certeza de que não chegarei a lugar nenhum.

As vitrines refletem um mundo multicolorido; fascinam-me.

Procuro teu rosto sorridente nos rostos

Que desfilam indiferentes no avesso caótico das vitrines.

Chove, chove e chove. . .

Que desolação na alma!

Que desalento assistir à passagem das horas,

Esvaindo-se por entre meus dedos lassos! . . .

Oliveira