Staccato

 
 
 
Dizer, estou ouvindo a chuva em staccato batendo nos vitrais
É tão banal quanto dizer que a chuva está batendo em staccato
Ainda que seja absolutamente verdade, ainda que seja real.
E observo com todos os sentidos aguçados por uma falta que não entendo
Pelo buraco enorme deixado por algo que nem sei  o que venha a ser
A chuva batendo contra os vitrais desta minha falta pelo inexistente.
Se digo, o que me falta são teus braços ao meu redor, e teus beijos
Não seria isso também banal e inútil, e ridiculamente lugar comum
Sem deixar de ser absolutamente verdade, e verdade que dói
Sendo a dor também real como o staccato na janela?
No entanto ambos são banais, e absolutamente inúteis.
Dizer que o que me falta hoje em meio à chuva é teu amor
E dizer que a chuva bate na vidraça o tempo que não passei contigo
É banal e inútil. Mas ainda assim a chuva bate seu staccato contínuo
E ainda assim esse espaço feito pelo teu não estar aqui me dói
Como se fosse algo importante, imprescindível, inadiável.
Sento-me frente à janela, observo as gotas descendo pelos vidros
Em desenhos totalmente indescritíveis em termos de poema.
E me pergunto por que a banalidade é sempre mais forte do que o resto
Como as frutas na fruteira lentamente se decompondo
Porque não foram consumidas em seu tempo determinado.
Nenhum poema se faria para as frutas, nem para o tempo que passou
E no entanto as frutas são as mesmas, apenas acrescidas do tempo
Por elas passando, deixando marcas. E isso também é banal
Como o staccato da chuva nos vitrais.
Volto-me outra vez para o interior do quarto, para o livro aberto
Para o poema inacabado. Tomo da fruteira inutilmente apodrecendo
Jogo a prova do tempo lixo adentro, e volto a me sentar.
O staccato persiste. Também persiste a perda, o vazio, a ânsia.
Penso na tua falta, ainda real, e na chuva, mais real ainda.
Retorno ao livro e mergulho em outras eras
Outra vida, na qual o tempo passou com significância
Com realidades maiores do que uma fruteira
Com uma importância maior do que o staccato na janela
Com uma utilidade maior do que esse vazio inacabado.
E a chuva continua batendo, incessante, na janela
O staccato do tempo do meu desamor.





 
Dalva Agne Lynch
Enviado por Dalva Agne Lynch em 10/03/2017
Código do texto: T5936364
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