As Águas
Estava diante de um rio ou seria o contrário?
Contemplava a paisagem taciturna,
Um final de outono que tinha o inverno de colorário,
A vista procurava a distância miúda.
A calmaria das águas refletia meu espírito,
Conturbado pelas adversidades cotidianas,
Mas acalentado por este lépido fluir líquido,
Candidamente desvanecendo as lembranças.
Uma garça prova alguns goles da límpida fonte,
Fico entretido ao contemplar tal espetáculo,
A natureza surpreende-me a cada instante.
Fico tentando desvendá-la feito um intrigante oráculo.
Me identifico com as pedras molhadas,
Procuro me embrutecer em certo tradicionalismo,
Sofro a deterioração do que supunha não poder abalar,
Sendo minado pouco a pouco, uma nascente sem sentido.
Molho as mãos e elas não diluem,
As águas passam por meu ser,
Avançam, me transpassam e confluem,
Vejo que teu sentido é correr.
Sirvo-me de alguns goles,
Pareço absorver esta porção da vida,
Sei que também sou desta prole,
Logo retornarei ao básico elementar que anima.
Refleti sobre a filosofia heraclitiana,
Eu e o rio modificamos, isso é fato,
Mas algo esotérico permaneceu de forma soberana,
Existirá um continuum por trás de cada ato?
Além do mais outra indagação apresenta-se,
Mudando-se tudo, a modificação se cristaliza,
Transformação enfadonha que envereda-se
Em cíclicos instantes de uma tragédia cármica que causa ojeriza.
Mas pensar desta forma mecânica seria deveras ingênuo,
Não se trata de mecanismos, sim de um caos impensado,
Jamais explicar tal complexidade com meras palavras pretendo,
Sou parte de um todo e todo de uma parte em minha porção de espaço.
Respiro fundo e absorvo o doce aroma,
Uma mistura de perfumes que me desfalecem,
Agora vejo que o mundo gira, parece uma redoma,
Não consigo fugir, os telúricos aos pés do mundo padecem.
A correnteza do rio é maravilhosa,
Faz prosseguir feito vontade schopenhaureana,
Furiosa, abre passagem perante árvores frondosas,
Noutro instante acalma feito um sátiro doidivanas.
Desloca-se um grupo de pequeninos peixes,
São insinuantes em seu hábitat,
Harmonia que nos provoca inveja por diversas vezes,
Seguem orgulhosos nesta instintiva tática.
Tentei tocar as folhas caídas da copa d’um arvoredo,
Foram levadas neste torvelhinho aquático,
Concluiria outrora que resultaram de um desapego,
Por não compreender a comunhão de um universo tácito.
Ramas ao derredor das margens davam auspícios de Éden perdido,
Animais de todos os tipos refestelando-se neste oásis,
Sol e Lua causando espetáculo de luz e sombra magníficos,
Eu parado feito estátua contemplativa diante do desenlace.
Uma solitária lágrima desprendeu-se de minha face,
Feito orvalho de uma melancolia contida.
Qual motivo fizera com que este novelo lacrimal se desfiaste?
Às vezes sentimos sem prévia explicação emitida.
As vulgaridades me são familiares, porque sou um ser vulgar,
Nada do que existe me é estranho, pois faço parte do que há,
Me separo por abstração criada por expressividade tumular,
Racionalmente extinguindo o que é pelo que foi e virá.
Meus motivos animalescos revelam o que sou,
Nego-me pela compreensão niilista do que existe,
Sigo excluindo-me da realidade que soçobrou,
Mortalha de uma existência que subsiste.
Esvazio a mente mas esta me engole inteiro,
No nada imaginativo manifestado em meditação profunda,
Só perco o tudo que há por imaginar assim sê-lo,
Saber Não-Ser é estar sendo por viés tortuoso que a mente dissimula.
Estou sendo inoculado neste hibridismo aquoso,
Misturamos e não sei dizer onde um começa e o outro acaba,
Talvez desague forçosamente por caráter tempestuoso,
Mais provável evaporar pela condição de fragmentação esparsa.
O inverno trará nova expectativa parafraseada,
O degelo anunciará o despertar do antes fossilizado,
A primavera reflorescerá a imagem conspurcada,
Para o verão abraçar e irradiar vida pelos seus longos raios.
Desejando ser Cernunos me contentei representando um totem esquecido,
Humano destacado da sua condição sociável,
Galho vistoso mas sem utilidade por estar ressequido,
Último devaneio de um racionalismo alienável.
O corpo pende rente ao regato,
Cai lentamente, sinto cada momento,
Feito descrição de Zenão do movimento estático,
Afundo em total desalento.
Uma lufada pressenti ao me levantar,
Esparramei água ao redor do que pude,
O êxtase estava em poder molhar,
Não há forma mais transparente na qual me aprofunde.
Se o rio fosse, a todos serviria,
Como homem, sei do sentido limitado,
Tudo desejo usurpar por rebeldia,
De herança terei o fim do tudo conquistado.
A filosofia é barata, mas nem todos conseguirão obtê-la,
As ninharias aos ousados pela fortuna parecem de pouca monta,
Mas o sentido oculto da mais primária alquimia,
Faria os gananciosos se remoerem por tamanha ignorância.