O Bolso

Aquele hiato proposital na vestimenta,

Pronto a engolir o que lhe for oferecido,

Como deuses antigos necessitando oferenda,

Absorvendo todo propósito adquirido.

Aquela lacuna de boca escancarada,

Pedindo sua cota de sacrifício,

Qual outro sentido teria a algibeira,

Senão ocultar material conspícuo.

Aquele bolso ora solitário, ora acompanhado,

Solícito ao portador da indumentária,

De motivos sacerdotais, hábitos velados,

Podendo assumir postura de arrendatário.

Aquela mania de se tornar poço raso,

Fomentando desejo de adquirir algo,

Compondo o todo elegante do trajo,

Ou simplesmente um à parte fidalgo.

Aquele adereço deveras essencial,

Seja pela necessidade em desaparecer objetos,

Talvez um refinamento social,

Quem sabe obra de astuto arquiteto.

Aquela bocarra num instante engolindo,

Noutro regurgitando formas diversas,

Dando um ar esotérico ao que vai exaurindo,

Também revelando mistérios de matérias secretas.

Aqueles formatos que variam conforme a criatividade,

Cores múltiplas de estética envolvente,

Detalhes trabalhados com certa acuidade,

Composição de tecidos atrelados magistralmente.

Aquela cavidade que infla ao consumir,

Parecendo a pança de um glutão,

Sendo que este alimento não irá diluir,

Apenas será expelido por exterior ação.

Aquele espaço composto de vácuo,

Logo comprimindo uma fração exterior a si,

Tendo como principal apanágio,

Captar para momentaneamente extinguir.

Aquela figura separada, ao mesmo tempo unida,

Criará uma distância entre o que mostra ou esconde,

Formando uma epopéia vulgarmente reduzida,

Expondo reles tecido destacado como fronte.

Aquele oásis no deserto de fibras,

Refúgio de uma ausência presente,

Microcosmos do universo de roupas insípidas,

Fração necessária que talvez outrora fosse ineficiente.

Aquela pequena porção que faz o papel do restante,

Pois a roupa engole o homem como o bolso as pequenas formas,

Nós preenchemos e damos vida ao vestuário indiferente,

Enquanto ele nos completa, transforma, adorna.

Aquele buraco invertido se torna um pedaço de pano,

Como língua pra fora de uma boca atrevida,

Sendo até mesmo uma estética de modos medonhos,

Perdendo o sentido e revelando ares de nostalgia.

Aquela alcova que carregamos próxima ao coração,

Inspira os românticos pelos trejeitos misteriosos,

Preenchendo romances em rica emoção,

Não podendo escapar nem aos menos criteriosos.

Aquele caixão onde fora sepultado segredos,

Muitas vezes sendo enterrado junto algum corpo,

Um dia torna-se caça de qualquer costureiro,

No outro caçador do que o acaso lhe faculta como desterro.

Aquela ferida que tem por finalidade não cicatrizar,

Por mais que seja alimentada do que há de mais nutricional,

A não ser que de vez seja extirpada sem exitar,

Ou antes nem tivesse existido, como falta de necessidade existencial.

Aquele vestuário com diversos bolsos, como hidra de diversas cabeças,

Múltiplos orifícios que como oráculos, revelam e ocultam,

Povoando uma galáxia indumentária em forma de buraco negro às avessas,

Recitando certa morfologia orgânica de naturezas que se complementam.

Aquela urna muitas vezes nem notada,

Aparentemente um modismo retardado,

Um dia ajudará a compreender a humana charada.

- Desmistificando a matéria, como homem renasço!