Barbear
Diante do espelho,
Olhos vidrados na própria imagem,
Homem que perscruta com zelo,
Os traços mais grosseiros de sua face.
Aquele volume de pelos que obscurece,
Sua face ali refletidamente expressa,
As mãos acariciam sua frontal tez,
O desejo ocorre e o sujeito se apressa.
Deixa salpicar volumes de água,
Para umidecer o rosto barbado,
Logo após cobrindo de espuma barata,
Verificando se em toda extensão havia espalhado.
O cheiro do lavatório,
Uma brisa solar escapa do basculante,
Aquele odor típico de sanitário,
Atmosfera azulejada, apatia aprisionante.
A imagem do box como câmara opressora,
Paredes de simetria hermética,
Privada com fome insaciável, devoradora,
Objetos da fetiche estética.
O indivíduo serve-se do aparelho de barbaear,
Lâminas alinhadas para deslizar sob a cútis,
Modelo que procura a anatomia facilitar,
Carregando alguma logomarca de trajos fúteis.
O primeiro movimento ocorre,
Levando uma massa de pelos e espuma,
Alguma gotícula de água escorre,
Aparecendo a pele raspada, com impressão de pura.
O vai e vém das lâminas criam um espetáculo,
Desaparecendo volumes que compunham,
O rosto vulgarmente masculinizado,
Fazendo surgir matizes que no semblante pululam.
Constantemente limpando os restos,
Da barba esfacelada, grudada no aparelho,
Que a corrente da torneira leva feito degetos,
Acabando por engrossar matérias que entopem boeiros.
Refleti sobre estas minhas partes dispersas,
Matéria desprendida e levada para decomposição,
Morte em vida presenciada por frestas,
Que minha existência revela sem ambição.
Imaginando aquela espuma como chantili,
Cobrindo as formas com um contorno grosseiro,
Os pelos misturados como se compusessem o fim,
De festa com restos de bolo misturados num tabuleiro.
Outra aparência se vivifa no final do processo,
Água e toalha retiram qualquer sobra indesejada,
Vez ou outra surge um corte por imperícia, confesso,
Mas os resultados são obtidos a cada etapa.
Se preciso for descarto o objeto de higiene,
Outros servirão com a mesma lealdade,
Importando cultivar o ritual solene,
Que faz exaltar minha vulgar masculinidade.
Esta herança será transmitida de pai para filho,
Alguns não possuindo nem necessidade de executar,
Cabendo discussão entre rodas de amigos,
Até mesmo mulheres palpitam sobre a arte de barbear.
Garotos se cortarão na busca pela maturidade,
Homens serão lembrados pelo toque que deram,
Aos diversos formatos que moldaram na face,
Mulheres, para beijar, muitos deles quiseram.
Seguindo este mistério do desvelar-se,
Semblantes que metamorfoseiam-se,
Como se personas gregas ocultassem,
Adereços estéticos que manuseamos e nos manuseiam.
A própria figura feminina circense de barba,
Remete a um masculinização preconceituosa,
Talvez por esta distinta característica que exarceba,
A separação de gênero caricatural e espirituosa.
Existirão os que passarão pela vida sem tal experiência,
Pelos tímidos demais para excederem como matéria capilar,
Masculinos que não tiveram a nítida vivência
Deste fetiche rústico que o animal utiliza para se humanizar.