Encantos das catacumbas
S’il vous plaît, ouça meu grito dos confins do infinito:
Já fui repasto de fera, em pleno século três.
Provim do povo gaulês. Vivo agora noutra esfera.
Um dia, não lembro o ano, pisamos solo romano
Para um barco carregar. Enquanto alguns tombavam,
Companheiros blasfemavam, eu continuava a remar.
Sempre abaixo de chicote, num tempo de pouca sorte,
Carreguei preciosas caixas, mas se algo derramar
Jogam escravos no mar, somando já muitas baixas.
Todo mundo quase morto, desembarcamos num porto
Com a galé avariada. Foi então última noite
Que nós sofremos açoite, em nossa carne marcada.
Meu parceiro de corrente fica extremamente doente
A situação ficou séria. Fomos deixados em terra,
Mas a vida não se encerra mesmo na extrema miséria.
Caímos na ribanceira, na morte quase certeira
Contemplei o céu somente, de alma desacordada
O corpo não vale nada, a vida parece ausente.
Quando acordei no escuro, meu coração que era puro
No meu peito então retumba, pois ouvi canto de anjos
Meu grito então esbanjo, ecoando na catacumba.
Prometi para mim mesmo não viver a vida a esmo
Dedicar-me àquela gente. Conheci então um velho
Que me falou do Evangelho e que no Cristo era crente.
Integrei-me na retreta, criei verso, canto e letra
De cânticos em louvor. Nas catacumbas de Roma
Novo rumo esta alma toma, na direção do Senhor.
Sempre há anjos por perto porque Deus escreve certo
Por muitos caminhos tortos. Com Cristo no coração
Chegamos à conclusão que existe vida entre os mortos.
(Frei Tas, meu heterônimo medieval)