Lobisomem Contemporâneo
Não sou homem, deixei de sê-lo,
Caminho pelas densas florestas,
Mesmo entre selvas de pedras me vejo,
Sou uma anomalia deveras.
Meu pelo espesso é formidável,
Um animal sedento pela carnificina,
Minha fome é insasiável,
Meu desejo de caça é de natureza doentia.
As presas buscam algo para dilacerar,
O gosto do sangue é de um sabor agradável,
Me machuco e logo em seguido estou a curar,
Sou uma criatura que consideram detestável.
Nas metrópoles minha fúria é excitada,
Acredito que pela brutalidade urbana,
A licantropia não pode ser mascarada,
Nem adiantaria, por ter uma vaidade ufana.
Lobo grosseiro que domina a penumbra,
O pesadelo dos mais cândidos,
Florescendo nas fantasias diurnas,
Promovendo um furor de pânico.
Capto o temor que espalho,
Provo-o aos poucos,
Tenho consciência do que faço,
Atemorizo o povo.
Lendas eu inspiro a cada momento,
Faço revigorar a fé dos cléricos,
Fui transubstanciado no mais vivaz tormento,
Sou temido até pelos mais céticos.
Meu uivo ecoa pela madrugada,
Como um grito de terror em suspenso,
Deixo toda a sociedade consternada,
Corrompo famílias, multiplico lamentos.
Minha crueldade não deve ser moralizada,
Fui banido desta apática sociedade,
Não me aplicam mais as regras civilizadas,
Só respeito as leis da mais violenta animalidade.
Sou um hábil caçador das sombras,
Pronto a servir-me do rebanho exposto,
Não há piedade que me corrompa,
Só das vísceras faço questão sentir o gosto.
Sou a metamorfose viva da filosofia hobbeseana,
Não apenas o lobo do homem, mas o homem do lobo,
De dia um lobisomem travestido, à paisana,
Para reinar no ocaso, soberano noctívago.
Minha herança será o horror,
Minha existência a próxima caçada,
Vivendo em extasiante torpor,
Monstro que desdenha a alvorada.
Como me tornei o que sou, não sei responder,
Que me importam os meios, objetivos fins,
Nada mais resta que possa me entristecer,
Mato hoje e amanhã morro, simples assim.
Vulgarmente contemplado pelos nécios,
Um enigma aos mais doutos,
Reverenciado pelos mais patéticos,
Seus sussurros mais abafados, eu ouço.
Não deixarei prole por puro egoísmo,
Quero ser o único a provar esta experiência,
Embora saiba que isso é impossível,
Sou resultado de outra bizarra existência.
Apurei o olfato para absorver o aroma das presas,
A audição é fantástica, capta os mínimos ruídos,
A visão desvenda os truques, camuflagens, espertezas,
A força é avassaladora, me sinto um hércules redimido.
Não tenho laços afetivos, favorecendo o desapego,
Exercito-me para aperfeiçoar as habilidades,
Serei endeusado como totem do desepero,
Avivarei nos corações humanos o signo da brutalidade.
Minha erudição ajuda a passar o tempo,
Muito mais do que isso, ajuda conhecer os homens,
Em cada época eu os estudo e desvendo,
Tudo para garantir êxito ao saciar esta voraz fome.
Me reservo o direito da cópula, depois mato a parceira,
Não desejo rebentos que venham reivindicar,
Quero ser o último que esta maldição obtivera,
Garantindo com meu fim, esta anátema erradicar.
Sei da aflição que a dor proporciona,
Não me apavora imaginar tais aflições,
Nada mais na vida me impresiona,
Sou fragmentado no quesito emoções.
Românticos, somos parecidos no drama,
No ego superestimado, nas ávidas possessões,
Param aí as comparações lânguidas,
Vocês estimam e eu devoro os corações.
Minha anatomia é versátil,
Tenho hábitos sedimentados,
Meu humor se altera fácil,
Escarneço o comportamento plácido.
Escalo árvores, montes, prédios, telhados,
Corro velozmente por fuga ou captura,
Enfrento o sol ardente, os terrenos molhados,
Caio, levanto, me defendo, ataco, eis minha postura.
Já me embriaguei com o sangue dos bêbados,
Me purifiquei com as crianças devoradas,
Fiz justiça aos assassinos setenciados,
Levei pra outra vida os das religiões mais fanatizadas.
Não me vejo pior do que a violência urbanística,
Do que conflitos étnicos, guerras sem sentido,
Tenho como mote a fome, essa é minha logística,
Sem buscar méritos, apenas selvagemente setencio.
Sofisticam as formas de me deter,
As balas de prata já caíram por terra,
Sou uma afronta aos tradicionais clichês,
Vivo como um enigma que não se encerra.
Cairei morto por algo banal algum dia,
Até lá viverei o que há para viver, sem remorsos,
Representante da mais sublime rebeldia,
Depois façam o que quiserem com meus desepojos.
Decifrei o esoterismo apocalíptico com maestria,
A besta reside na natureza humana, não há dúvida,
Não existe besta sem crueldade, Nietzsche dizia,
Portanto, contemplem emergir do homem a imaculada fúria.
Minha natureza não é estranha, apenas negada,
Se hoje sou estorvado, amanhã serei exaltado,
Antes caça, agora caçador, que irônica piada,
A responsabilidade é minha, o destino eu mesmo faço.