Vampiro Contemporâneo

Este ser habita os becos metropolitanos,

Com sua indumentária negra,

Pra muitos apenas um gótico contemporâneo,

Vagando pela madrugada sem eira nem beira.

O olhos profundos absorvem a penumbra,

Observando cada movimento noturno,

Dissipando a névoa que envolve a madrugada obscura,

Paisagem cinzenta com auspícios de prelúdio.

Caminhantes disputam as calçadas,

Ruas fervilhando de jovens em busca de diversão,

Trabalhadores exercendo funções impensadas,

Urbe magnífica que instiga a ávida imaginação.

O andarilho soturno espreita o ir e vir,

Quase não é percebido, embora alguns sintam,

Aquela presença que faz o peito comprimir,

Sentidos diversos que nos instigam.

Esse sujeito, um vampiro contemporâneo,

Viveu séculos pelo mundo,

Sabendo que os atos são sucedâneos,

Por mais que se atribua um sentido profundo.

Presenciou os chamados grandes feitos,

Agora tudo lhe parece tão apático,

Perdeu o respeito inclusive pelo medo,

Incessantemente busca algo inesperado.

Os rostos mudam e às vezes parecem ser os mesmos,

O eterno retorno é mais breve do que supusera,

Pra quem vive neste infinito pesadelo,

Todo instante é terrível e fastidiosa quimera.

O sobretudo esvoaçante por imposição dos ventos,

O corpo frio independente da temperatura,

O gosto da última gota de sangue é um tormento,

Sede insaciável que não encontra brandura.

Acredita que seja o último de sua espécie,

Ou seria raça?

Quando humano tinha a resposta disso como égide.

Agora!? Não importa!

Segue solitário feito um espírito errante,

Mais proprício seria dizer que foi banido,

Arrancado do humano como malígno câncer,

Vivendo como morto em eterna agonia.

Ainda se recorda de memórias passadas,

Resquícios medievais de sua época áurea,

Logo após deturpada por preconceitos iluministas,

No final, conjecturas de uma história enquanto tragédia.

Queria representar os homens, mas deixei de ser um,

Devoro-os pela fome de caçador implacável,

O gosto ao paladar se tornou comum,

Mas as caçadas ficaram tediosas de modo inexplicável.

Presenciei o desenvolvimento intelectual,

Me apropriei de certa epistemologia,

De que serve este arcabouço romântico ideal,

Se conta mesmo a ação violenta que exerço com selvageria.

E quanto as ditas descobertas que moveram os europeus,

Gloriosos com suas investidas e pilhagens,

Promovendo o aniquilamento de culturas que corrompeu,

Acumulando falsas riquezas por sórdida vaidade.

O coração humano é deveras fraco,

Efêmero a ponto de nunca se satisfazer,

Seus motivos mais gloriosos, a posteriori se tornam baratos,

Irá se deteriorando até atingir o fim maior que é fenecer.

Já provei tantas iguarias, mas o “sangue

É um licor especíalíssimo”, Goethe revelou

Com Mefistófeles, em palavras emocionantes,

Uma obra assim, é dos poucos legados que perdurou.

Tantas culturas rivalizadas, mas enxerguei sua proximidade,

Na busca pela supremacia das partes, suprimiram o todo,

Tantas teorias tentam explicar, seja evolucionismo ou luta de classes,

Tem sempre alguém em busca do penhasco para ocupar o topo.

Esqueci como é beijar, pela falta de postura com minhas presas,

Nem carícias sou digno de fazer ou receber,

Basta estar com as vítimas e logo sinto os caninos excitados, de forma tesa,

A voracidade não pode mais arrefecer.

Quantos tentaram ceifar minha existência,

Foi divertido travar tal embate, um atrativo diferenciado,

Mas tratei-os sem nenhuma complacência,

Estraçalhei os corpos por divertimento inusitado.

A tecnologia que a chamada civilização desenvolveu,

Serviu de mote à sociedade até os dias atuais,

Confesso que no início até que por um instante me comoveu,

Depois não passou de arremedo dos humanos artificiais.

Tantos vícios tentaram apaziguar o desespero,

Se tomasse esse caminho, não poderia suprir o aumento da necessidade,

Expelindo no final por não mais surtir efeito,

Deixando a mente alienada pela fraqueza de uma mediocridade.

As mulheres não despertam o interesse primeiro,

Não busco o sexo, apenas a substância assexuada,

Mato a sede como se esta fosse a libido que me concedo,

Não produzo vida, apenas mortes e violências acumuladas.

Meus sentimentos se esvaíram,

Meus atos orgânicos simulam a mecânica,

Sou a prova viva do nada que construíram,

O sepultamento da famigerada profecia messiânica.

Um jovem me esbarra e me xinga,

Neste momento passo despercebido,

A sociedade de agora é a mais fria,

Tudo lhes parece um acúmulo sem sentido.

Me despi do antigo romantismo estético,

Sem dormitórios com associação mórbida,

O sol nunca foi problema, isso é sério,

Até deixo a tez escurecer por irradiação metódica.

Não produzo excesso de consumismo,

Tento ser discreto perante meu rebanho,

Um bom lobo que dissimula com escarninho,

Compondo este hediondo cenário coetâneo.

Assisti tanta coisa sem ter sido visto,

Mesmo sendo percebido em dado momento,

Com o passar do tempo fui esquecido,

Um daqueles perdidos monumentos.

Fui pesadelo para alguns e sonho para outros,

A fortaleza da fé e o ceticismo em alternâncias intempestivas,

Um Don Juan mórbido em busca de um novo corpo,

Agora um andrógino em estado de constante aporia.

Servos fiéis fizeram-me companhia,

Lugares interessantes pude contemplar,

Nas agitações públicas em dado momento senti euforia,

Nos mais recônditos recantos privados pude me deliciar.

Já tive ceias fartas com pessoas apetitosas,

Seduzi muitos escravos com extrema maestria,

Me infiltrei na política e vi atitudes governamentais assombrosas,

Não deixei proles ao longo de minha morte em vida.

Não temam o que sou, pois faço parte da própria natureza de vocês,

Um espectro que surge dos temores imaginativos mais férteis,

Rebento de uma Odisséia sem começo nem fim, reeditada diversas vezes,

Repleta de meios ilusórios para alcançar causas estéreis.

Sou o niilismo oculto de um inveterado estoicismo rudimentar,

Último suspiro de uma providência agonizante,

Aniquilador da esperança que sobrara do episódio que Pandora viria lamentar,

Anátema que persistiu após a extinção humana fulminante.

Antes deste apocalipse preciso saciar os desejos,

Já avistei um saboroso e vulnerável alvo,

O ataque será atípico aos outros feitos,

Exposto aos leigos que serão tomados de assalto.

A multidão está horrorizada com o espetáculo grosseiro,

Os oficiais próximos estão se dirigindo ao embate,

Sorvo até a última gota esboçando um sorriso cínico de desrespeito,

Solto o cadáver lânguido e caio de joelhos com as mãos na face.

Sou atacado pela multidão enfurecida,

Golpes diversos me atingem e desfaleço,

Fui tido no laudo como indigente de mente enlouquecida,

Enquanto espero a conclusão da necrópsia que padeço.

Sob a terra eu repouso aguardando o suposto juízo final,

Aqui me sinto mais em contato com o planeta,

Deixo-me decompor até reduzir-se a um chorume primordial,

Liquefazendo-me em substância de escura beleza.

Neste exato momento descobri o que sou,

A natureza humana mais essencial,

Uma asbtrata pandemia que ecoou,

Cativa pela pútrida degenerescência da objetividade animal.

Existo como negação do homem,

Realizado pela força motriz contrária à “anima”,

Flagelo patente do sujeito vigente,

Amargura que viola a mais pura inocência.

Conhecendo-me, conhecerás a você mesmo,

A arte expressa a essência do ato,

Sentirá a príncípio o arrebatamento do desterro,

Para rejubilar-se com o despertar do inominado.

O mistério, segundo Hegel, é revelação aos iniciados,

Muitos se perdem na covardia perante a realidade,

Dostoiévski lembrou: "Tudo será permitido ao ousado!"

Viva o instante por ser a única fonte de sua potestade.