DANTES VISITANTES NO PORTAL DO ABISMO


I – Primeira Descida (A Paixão do Mortal: A Dor)
 
Qual tu no leito concupiscente,
Curvava-se para frente
E abanava a cauda empinada
Abrindo a boca e exibindo
A língua que escorria para fora
De forma eufórica e faceira
Qual convite à brincadeira,
Aos jogos e acalantos,
Tão dócil que nem parecia
Ser a fera que o grande portal
Do fero abismo protegia!
 
Pensei no quão estranha
Parecia essa alegria
Em terras tão sombrias,
E no quão dócil era o cão
Que guardava a almas tão aflitas!
 
Um cão de guarda estranho,
De aparência fera e feitio doce,
Qual animal de estimação
Que por mimos nada mais pode
Oferecer de perigo ou proteção!
 
Um cão estranho para guardar
O imponente e tétrico portal maldito,
Pois não impede a alma de entrar!
 
Deveria todo mortal entender
O aviso como dica ao ler
Em pedra preciosa cilada
Contra as almas perpetrada!
 
Diante do portal de diamante
Li como Virgílio e Dante
A terrível inscrição entalhada!
 
A sentença terrível, ao final
Ainda guardo na lembrança:
“Deixai, ó vós que entrais,
toda a esperança!”
 
Ao entrar descobri a verdadeira
Natureza do cão dócil para o mundo
E besta abominável para o submundo!
 
Ao tentar sair dali
– daquela pavorosa tela
de Doré ou de Dalí –
Revelou a besta para mim
Sua verdadeira e múltipla
Face de cão policéfalo!
 
Cão de olhos traiçoeiros:
Abertos quando entregue
Aos afagos de Sono;
Fechados quando entregue
À guarda, em plena vigília!
 
Desde o nascimento alimentado
Com leite de sua refeição humana,
Apraz-se em devorar os condenados!
 
Não te identifiques e não
Te ofendas: de ti não falo!
Do Inferno não és o cão
– nem mesmo a cadela!
Não tens como irmã a Hidra
Nem a horrível Quimera,
No entanto és tão perigosa
E abominável quanto elas!
 
Mais te assemelhas
Em figura às Gréias,
E em feitio às Fúrias,
Embora – certamente –
Moral para julgar os vivos
E os mortos não tenhas!
 
Não, não guardas o portal do Orco,
Mas para lá me atraíste
E como o vil e pérfido cão
Fizeste parecer alegre e bom,
E de lá não me deixaste sair!
 
Lancei tal como os mortos,
Ao solo árido e sombrio,
Porções de bolo de cevada e mel
A fim de acalmar a fera,
Mas poções soníferas não tinha
Para reproduzir o ardil de Eneias!
 
A morte, contudo, não me provocaste,
Mas em vida me provocaste com fúria
Qual fosses uma das temidas Fúrias
– como querias fazê-lo em minha morte –
E dessa vida fizeste a morada de Plutão
Que carregas em teu baixo coração!
 
Já não me tens cativo
Em teus dantescos domínios,
Posto que sombra não era
E tão vivo me encontrava
Quanto Dante em sua jornada,
Então pude esperançoso e feliz
Ser conduzido à radiante saída
Por minha bela e pura Beatriz!
 
 
II – Segunda Descida (A Paixão do Herói: A Cólera)
 
És a usurpadora do ínclito
Palácio do coração há muito
Em meu argênteo peito erigido!
 
Meus maiores tesouros manténs
Guardados para ti como entulho
E não permites que por mim
Sejam apreciados ou ao mundo exibidos,
Minha face esmaecendo e a língua
Oxidando junto às feições
– como brilho próprio
para me ofuscar não tens,
minha rutilância furtas
e com o pouco que valorizas
te adornas de forma egoísta!
 
Como Hércules, às profundezas
Do meu Orco destemido descerei
E o Cérbero à luz do dia trarei
Para te expulsar do palácio!
 
Subjugarei em força e espírito
À minha besta interior assassina,
Cruel e terrível, devoradora
De carne humana para que não te devore,
Para que encoleirada e encolerizada
Apenas te afugente e amedronte!
 
Trago-o nos ombros sem feri-lo;
Suporto seu peso descomunal
E tolero suas dolorosas mordidas!
 
Ouve o cão que a quilômetros ladra
Ensurdecedor e terrível, aterrorizante
– ele vem pela vil ladra
que os alheios, íntimos e mais valiosos
tesouros do coração guarda!
 
De nada servirá, ó cruel usurpadora,
Que te refugies como o inerme Euristeu
No jarro de bronze: foge do palácio!
 
Em plumas, ouro e diamantes,
Por toda a vida te refugiaste
Trazendo teu Orco,
Mas poder não mais tens
Para atormentar àquele que faceiro
Traz o Cão do Inferno a fim de afugentar
Tua abismal presença mundana
– não farei como o filho de Júpiter,
que o trabalho de expulsar
o abjeto usurpador
aos Heráclidas deixou!
 
Ao devolver a besta canina
Ao horrendo Orco,
Debruçado sobre o leito do Lete
Estarei a contemplar tua imagem
Ser lavada e levada
Do meu reflexo pelas correntezas
Do mais completo esquecimento!
 
 
III – Terceira Descida (A Paixão do Poeta: O Amor)
 
Por tua natureza avernal
E pelo que representas para mim,
Tens perfume de morte e abismo:
Notas sepulcrais ao anoitecer
E aroma queimado ou defumado
De pira funerária ao amanhecer!
 
Estejas sob as trevas do Érebo
Ou sob a luz de Febo,
Sempre logras despertar
O que há de pior em mim!
 
Mas a terna e bela Eurídice,
Que aos domínios obscuros
De Plutão e Prosérpina
Por vias normais chegou,
Das trevas consegue
Em mim despertar
O que tenho de melhor:
O puro e imenso amor!
 
Para ela não guardo
A força e a cólera
Que conheceste
Do divino Hércules;
Nem os engodos
Do valoroso Eneias!
 
Ao invés de ódio, terá amor;
Ao invés de palavras, versos;
Ao invés de bolo de mel,
Música aos ouvidos,
Música para a alma,
– a lírica dos deuses!
 
Com teu veneno,
À morte condenou-a
Para fazê-la cair
No sombrio abismo,
Onde reina o esquecimento,
Mas viva sempre esteve
Na luz da razão e do coração
– ainda que uma fraca sombra!
 
Ao Orco baixarei
Uma última vez
Em busca de Eurídice,
Em versos e ao som
Da lira de Orfeu!
 
Chegando ao medonho Averno,
Com versos pagarei Caronte
E embalarei ao fero Cérbero!
 
Levarei alívio às almas
E deterei todo o Orco,
O Tártaro e os Elíseos!
 
Tântalo esquecerá a sede,
Sísifo sentará sobre a rocha
E a roda de Íxion se deterá!
 
O Inferno se converterá em Céu:
O Orco se parecerá ao Olimpo
Com a beleza dos versos e da lira!
 
Cantarei a Plutão e Prosérpina
E novamente o abismo provará
O sal de suas raras lágrimas!
 
Pela segunda vez ouvirão
O pranto ensurdecedor das Fúrias:
Ao invés do sal nas feridas alheias,
Sentirão o sal escorrer diluído até os lábios!
 
Mas não cometerei o erro
Do Poeta, filho de Calíope:
Enquanto estiver nas trevas do abismo,
Não duvidarei, não titubearei,
Para trás – certamente – não olharei!
 
Pelo semblante triste e esmaecido
Pelo olhar frio e endurecido
De Plutão não serei tentado,
Apenas pela face resplandecente
E adornada pelo olhar de Febo,
Lírico e sempre cálido!

 
Julia Lopez

26/05/2014
 
 

Nota sobre a foto“La Barca de Caronte”, do Pintor espanhol Jose Benlliure Gil (1919).

 


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Julia Lopez
Enviado por Julia Lopez em 27/05/2014
Reeditado em 10/01/2024
Código do texto: T4822334
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