PARA O POETA LUIZ CARLOS MATTOS

Estou aqui em tua casa

como se estivesse diante de um espelho.

Não penso.

Não peso.

Não peço.

Apareço e desapareço

como simples reflexo

imagem

que o tempo não devolve

e poderá estar

gravada

--perdida ou registrada--

em corações

olhos

e álbuns que desconheço.

É noite na tua casa

e eu procuro em gavetas

o bairro que se foi,

a praia

que desapareceu,

a alma

que está mais sozinha,

e até o lampião que ficou aceso

e ainda ilumina

este momento

de inexistência da casa

de praia do vô Bento.

Solemar, você sabe,

não é uma varanda aberta

aos horizontes do mar.

Também não é uma rede rasgada

nem o remo estilhaçado.

Solemar é um queixume de sal

nas ondas, um uivo de bóias

trazendo nossos medos

ao alcance de nós mesmos.

Solemar é mais ainda: um mar torto,

um viés de enxergar sempre

e de não chegar nunca.

Mas que infância não foi assim?

Todos nós não nascemos

para os heróicos brados retumbantes?

Não fomos feitos para avançar

por um itinerário qualquer,

a qualquer hora e em qualquer direção?

Ou será que alguns de nós

--os atrasados e os desajeitados--

escolheram o caminho das pedras

só para provar que o caminho é infindo

e que chegar é adiar uma despedida.

Não, não quero repetir a velha cantilena

que nem mesmo habitou a velha Helena.

Mando Homero às favas.

Mas onde está a minha família

que ficou minguada

e as casas que se precipitaram

em precipícios

preservando cristaleiras conversas de cozinha

cômodos escuros paredes velhas

frestas no rodapé

e baratas que nos causavam medo.

Lembrar, é claro, é função humana.

Mas nós

que éramos mais frágeis que a pena

na penumbra

já insistíamos em guardar:

papagaios de papel,

caramujos que traziam os barulhos do mar,

meninas que despertavam as comunhões mais plenas

e mais impossíveis,

e emoções que ficaram presas

em conchas, em barulhos de gaveta, em revistas

que já se foram, em ruas que desapareceram e nunca retornaram.

Tudo isso que estava ali, à nossa frente,

era apenas um horizonte? Uma possibilidade?

E o que fizemos com essas pertencenças,

com essa sensação de estar presente no móvel profundo

das águas e das areias?

No fundo do poço

nós cavávamos a nossa sede.

Algum dia, dos lábios impronunciáveis, surgiria a palavra

companheira,

imã e irmã,

talvez romã rebentando nossa ancestralidade

em um muro.

E tudo isso não dividia nada. Nem separava nosso destino

do destino daqueles que significavam tudo pra nós.

Não demos murro em ponta de faca. Antes atávamos a vida com barbante.

Mas, de algum jeito, sabíamos:

nossa boca encontraria a boca imaginada, nosso corpo ganharia a dimensão do outro corpo.

Mas ignorávamos as resultantes:

as águas misturando-se as águas,

as ondas nascendo das ondas,

e aquela areia, apagando pra sempre,

o desenho de nossos pés.

Rilke diria: tudo isso era missão.

Acaso a cumpriste?