Eu vejo

Eu vejo tudo que te aconteceu

A vez que foi embora

E se perdeu, e dormiu em bueiros

E dentro do mato

E sobre os cajueiros

Abraçados aos galhos que te salvaram...

Eu vejo os teus pensamentos

A quererem recriar uma realidade

Que nunca existiu

Onde haviam abraços para ti

E pessoas que te amavam

Mas que tu nunca consegues imaginar...

Eu vejo tuas pegadas solitárias

Pés pequenos perdidos no mundo

Que nunca chegaram a nenhum lugar

E por isso nunca pararam

Nunca deixaram de caminhar

E sangram agora

E nunca vão parar de sangrar...

Eu vejo o dia em que parou de envelhecer

Aquele dia em que morreste

Depois da chuva de desolação

Que te fizeram chorar por dentro

Sozinho no meio da imensidão da solidão...

Eu vejo as vezes em que se afogou

Em trevas, tão tuas amigas

Que esqueceste da luz

Da luz que se apagou para sempre

De teus olhos distantes de qualquer ilusão...

Eu vejo o tempo que passou por ti

E cada um deles te deixou uma marca

Marcas se sobreporam a marcas

De modo que não é possível saber

Quantas foram as lapadas

Que te deram a cada lugar

Onde pensaste ter achado um lar...

Eu vejo as vezes que te cuspiram

Os murros que deram na cara

Os chutes nas costelas

As vezes que achou que não ias mais resistir

Vejo quando foste expulso de casa

Sob olhares ríspidos de completa desaprovação

Eu vejo as vezes que apunhalaram teu coração...

E quando pediste abrigo

E quando pediste comida e água

E quando carpiste de cansado

E ficaste uma eternidade na estrada

Sem ter quem te viesse levantar...

Eu vejo as cartas que escreveste para Deus

E Deus não te ouviu

E tu te sentiste absolutamente sozinho

Ser ter a quem rezar

Sem saber rezar

Se agarrando às plantas

Como se elas te entendesse,

E assim foi também com as pedras

E os espinhos...

Eu te vejo agora

Desiludido como uma folha em decomposição

A sonhar como sempre

Num dia feliz

Sem ter nisso nenhuma convicção...

Vai amigo, segundo após segundo

Vivendo a vida que há

Seja como for

Um dia dormirás para sempre

E então a paz

Te haverá encontrado,

Mesmo que até disso não tenha mais

A mais mínima lembrança...

Eu vejo que tudo te faltou

Exceto a esperança

E por isso mesmo tiveste uma vida plena

Uma vida que valeu a pena

Vida longamente pequena...

Descan-se em paz...

Sebastião Alves da Silva
Enviado por Sebastião Alves da Silva em 05/07/2024
Reeditado em 10/07/2024
Código do texto: T8100761
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