Crueldade

Balança criança

Balança bastante

Balança agora

Balança sem pensar na demora

Afinal, depois há de vir a hora

Na qual a ti ordenarão

Que daqui, sim,

Desse canto

Desse lugar

Saias correndo

Jamais devagar

Saias correndo

Não batas a porta

Mas, parta

Parta já

Vá embora

Embora tu irás.

Balança criança

Balança bastante

Balança agora

Balança sem pensar na demora

Afinal, depois há de vir para ti

Dias e dias

Afinal, depois há de vir para ti

Horas e horas

Onde tu, sequer, por um único momento,

De quaisquer sofrimentos deixarás de partilhar.

Tua vida, criança pequena, por completo, haverás de lastimar

Teu ser, criança pequena, por completo, haverás de lacrimar

Afinal, foi essa a oferta que recebestes

E nela te enquadrastes

E perante ela continuarás, durante tua existência, a se enquadrar.

Criança, da vida somente isso tu terás

Criança, da vida somente isso tu albergarás.

Balança criança

Balança bastante

Balança agora

Balança sem pensar na demora

Enquanto isso eu continuarei parada aqui

Nesse canto, nesse lugar

De ti escondida

De mim bem protegida

Enquanto isso eu continuarei aqui

Nesse canto, nesse lugar

De ti escondida

De mim, por demais, protegida.

Foi aqui nesse lugar que há tempos estanquei

Será aqui nesse lugar que haverei de um dia findar

Resolvi

Resolvido está

Daqui não ouso sair

Daqui não ouso sequer pensar

Em outro canto buscar para me abrigar

Desse lugar não passa pela minha mente

Nem de longe um dia me afastar.

Foi aqui, nesse lugar, que encontrei um pouco de harmonia

Capaz de apaziguar os murmúrios da minha alma

Foi aqui, nesse lugar, que encontrei algo capaz de sublimar meus pensamentos

Também foi aqui, nesse lugar, que encontrei, algo que não sei ao certo como denominar,

Sei apenas que aconteceu e conseguiu abafar minha agonia tão seca e tão fria.

Isso tudo ocorreu em momentos esmerados, pouco a pouco, momentos inesperados

Mas satisfez necessidades que habitavam meu ser

Conseguiu, assim, de mim subtrair um pouco do mal estar

Esse que vive dentro de mim, latente, percorrendo meu corpo dia após dia

Sem me permitir só ficar

Vive em mim

Pela manhã

Pela tarde

E pela noite

Vive em mim

Frequente

Vive em mim

Diariamente.

Perdoa criança se me desviei de ti

Volto agora desejando ferrenhamente te suster

D'onde estou sentada consigo, por completo, enxegar-te

D'onde estou sentada, rente à essa muralha, consigo, por completo, observar-te

Calada pairo

Calada permaneço

Acanhada teus gestos reparo

Amedrontada teus movimentos acompanho

E, por fim, alinho o que percebo de ti em meus pensamentos

Não movo um gesto em tua direção

Não sou capaz de nenhuma ação

Não sou capaz de qualquer reação

Diretiva alguma posso lhe oferecer

Diretivas nenhuma sei eu reconhecer

Delas nada consigo vislumbrar

Delas nada consigo eu fitar para entender.

Infelizmente, não posso eu deixar de perceber

Uma tristeza branda a emanar, nesse momento, tua face rosa

Repentinamente, paralelo a esse triste olhar

Avisto num instante rápido

Tua face reluzir

Junto com essa breve luz

Esboças tu um meio riso.

Daqui, creio que por ti, repito teu gesto

Esboço também um riso lateral

Pois vi, vi sim em teus olhos negros

Um fiasco de claridão

Fazendo parecer que sonhastes algo bonito

Fazendo parecer que um sonho plantaram em teu coração

Mesmo sendo um brilho relampagueado

Revela, criança pequena, uma dose de alegria

Intrigada recorro ao motivo que possa ter te afetado

- Será que enquanto tu rodavas e rodavas

Pensavas tu que alguém a tomara nos braços

E ao som de uma bela melodia

Embalava teu corpo cansado

Fazendo tu saborear, pela primeira vez,

O doce prazer de ninada por alguém ser?

Volto a mim

Eu, tão vil, continuo de ti a me esconder

Eu, tão vil, continuo de mim mais e mais a me afastar

Terei eu que ir até tu para dizer

Que não há espaço algum no meu ser

Que talvez pudesse tua candura acolher.

Volto a mim

Eu, tão vil, fiz-me pobre, empobreci

Eu, tão vil, fiz-me podre, minha alma perdi

Eu, tão vil, fiz-me devassa, e meu coração longe lancei

Meu coração, criança pequena, lancei todinho ao chão.

Só me resta agora por ti lamentar

Por quando o mundo tu adentrou

Cruéis foram os que te receberam

Ao lhe ofertarem somente

Os restos e as sobras fazendo de ti

Já, um pequeno indigente para assim a vida levar

Nada de pão

Nada de água

Nada de teto

Menos ainda amor e afeto.

Sozinha te deixaram no percurso que para ti arquitetaram

Sozinha te esqueceram na jornada que para ti foi ofertada

Não permitiram sequer que aprendestes uma prece

Não permitiram sequer que conhecestes uma oração

Para, ao menos, durante os momentos mais árduos da tua jornada

Pudesses com uma reza tua alma acalmar e tua estrada limpar.

Sendo assim, recorro ao direito que me resta de imposição

Denomino ordinário esse alguém que ao mundo te trouxe nessas condições

Denomino ordinário esse alguém que para tu existir

Apenas ofertou mendigar dia e noite, noite e dia, sem parar

Denomino ordinário esse senhor que pensa deter nas mãos o poder

De vidas e vidas arruinar sem nenhuma compaixão aos desgraçados apresentar.

Na minha memória guardarei secretamente, criança

O pouco que de ti pude conhecer

Na minha memória guardarei secretamente, criança

O pouco que da tua existência consegui saber

Na minha memória guardarei secretamente, criança

O quão árduo é e continuará a ser

Tu no mundo a lutar fervorosamente para sobreviver

Quanto à tua existência assemelho a minha, criança

Fomos denominadas a saborear o desgosto que a vida pode doar

Fomos escolhidas a penar mágoas e dores sem sequer termos o direito dos olhos poder molhar.

Insisto em te dizer

Continuarei eu a me refugiar

Continuarei eu a me esconder

Perdão, mas tudo que posso lhe propor

É que aprenda com isso e faça o mesmo

Somente assim teu eu em teu ser mais leve poderá soar.

Siga teu caminho e continue a ser somente a sombra

Não permita que a luz clareie tua imagem

Se isso por ventura ocorrer

Todos de ti mangarão

Todos de ti se afastarão

Todos de ti haverão de lhe amaldiçoar

E desejar que conheças precocemente

O inferno para nele teu corpo queimar.

Perdão criança, não tenho nada belo a te dizer

Perdão criança, não posso ir em tua direção

Contrário fosse, arrastá-la iria pela mão

Contrário fosse, arrancá-la desse fétido lugar faria

Entretanto, nada do que se supõe vinga agora

Entretando, nada do que se supõe um dia haverá de vingar.

Recorro agora ao lúdico e ponho-me a imaginar

Nós duas sentadas num lugar montanhoso

A acompanhar o sol se recolhendo

E a noite consigo trazendo

Estrelas e mais estrelas

Para que pudéssemos uma a uma contar.

Sinto, tudo isso é apenas um retrato

Da minha mente, essa que vive a alucinar

Nada de nada haverá de acontecer

Tudo da mesma forma, igual, haverá de permanecer.

Só me resta, então, pedir teu perdão

Por ser eu desprovida de bênção

Por ser eu desprovida de coração

E por carregar na pele os cortes

Desenhados pela minha solidão.

Faz-se hora

Daqui preciso ir

Daqui preciso sair

Daqui vou-me embora

Daqui tenho, em verdade, é que fugir

Por completo me afastar

Tanto de ti quanto do teu lugar

Para finalizar

Se um dia tu resolver teu perdão a mim doar

Procure-me por aí, sugiro que vasculhe primeiro os becos

E ao me encontrar, peço por favor, que grites alto, bem alto

Para que eu possa além de ouvir também absorver

Que por ti perdoada fui

Sendo assim haverei de diminuir

A culpa que carrego comigo e parece não ter fim.

Vem à minha cabeça uma interrogação:

- Serás tu a pessoa capaz de abrandar

Todo o mal que em mim existe

Todo o mal que em mim há?

...Reparastes, criança pequena,

Começamos por ti

E findamos em mim...