EU, QUE TENHO UM ROSTO QUE NÃO É MEU...

Eu, que tenho um rosto que não é meu

um olhar que não é meu, um sentir que não é meu

que caminho por ruas estreitas de paralelepípedos alienado ao mundo e à vida

que acordo de segunda a segunda para dar com o nariz na existência mesquinha e descontente

após atravessar a madrugada a remoer as versões de mim mesmo

que cumprimento as manhãs com o olhar abatido, mas não pelas derrotas

mas pelas lutas das quais sou privado de ir ao encontro

pelas emoções reprimidas à base de bom-dias sucintos, sem nenhum boa-noite

que não entendo ninguém, nem sou entendido

mas me entedio com a maioria das cousas e das pessoas

sempre tão previsíveis, ocupadas com afazeres cuja urgência é mera convenção para se manterem ativos e sentirem-se úteis

eu, que quando escrevo estas linhas, não meço o peso das palavras

nem conjugo verbos para efeito moral, emocional ou reflexivo

que acho na liquefação do gelo destes termos uma desculpa para me manter tão ativo e ocupado quanto qualquer outro

e que quanto mais me debruço sobre o papel em branco, menos razão encontro para fazê-lo

eu, que não tomo sol, que não vejo gente

que se puder evitar não vou a festas, nem casamentos

que não apareço em aniversários nem chás-de-bebê

que não acho graça em cervejadas, nem me iludo com degustação de churrascos

que nunca peguei um trem, nem entrei num avião, nem pude pular de paraquedas ou planar num dirigível

que nunca na vida comi caviar, que só sinto o cheiro dos espetinhos na rua, sem interesse em provar

eu, que poderia passar a tarde enumerando tudo aquilo na vida que deixo de fazer ou experimentar para ter o que comentar em alguma reunião social a qual seja obrigado a ir

acabo por me distanciar de todo sentido que dão à minha própria existência e me volto para a teoria egocêntrica de alguém que não está em casa, mas fora de si

a observar cada fato isolado, como se através de um salão de espelhos

como um animal marinho, predador-mor, que passou a vida olhando para os lados, procurando anémonas ou sabe-se lá o que

para manter-se ocupado e ativo (...)

e repentinamente é tirado à superfície e apresentado ao oceano vasto

ao conjunto de vastos oceanos

às galaxias, às constelações, às probabilidades de existência de oceanos vastos nos múltiplos universos

eu, que como este animal deslumbrado, deparo-me com a realidade estarrecedora,

reconheço, enfim, que cada partícula de mim, não é minha, senão dentro da concepção que de mim faço, ou fiz, enquanto ainda me encontrava submerso em meu próprio oceano

sem ser capaz de desvendar o segredo que, contraditoriamente, me faz único naquele habitat e multifacetado nesse logo acima da razão

a sentir uma brisa matutina, um raio de sol, o calor de um aperto de mão nas mãos fraternas de outrem

incerto a respeito de quem em mim está atuando,

já que eu, eu mesmo sou o que nunca está ciente ou disposto a fazê-lo.

Poema publicado em:

PUPO, Fábio Henrique. et al. "Verso & Prosa: Projeto Poesia na Escola". 6.ª ed. Brodowski: Editora Palavra é Arte, 2021.

F H Pupo
Enviado por F H Pupo em 19/03/2025
Reeditado em 22/03/2025
Código do texto: T8289247
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