DEVANEIO

"Há tanta suavidade em nada dizer

E tudo se entender."

— Fernando Pessoa

Palavras cansam

Pensamentos cansam

mais do que a matéria

bruta do nosso próprio corpo cansado

do que os braços e as pernas latejantes

do que as pálpebras pesadas na noite adentro

do que os dedos rijos

do que as mãos de mármore

largadas sobre o colo de aço

Cansam porque, proferidas, perdem a simplicidade e a leveza de seu valor criado

E ganham a carga dos significados, das interpretações, das pressuposições

Cansam porque se extraviam no tempo e na memória

Porque não têm o alcance de uma obra imagética

Nem correspondem à vontade real de sua concepção

E eu estou farto em ter de usá-las por convenção

Por não ter nem a destreza de um pintor canhoto, nem a habilidade de um cantor mudo

(Pois é este o sentimento que experimento cada vez que me debruço a escrever)

Anulo-me entre paradigmas e sintaxes como um músico incapaz de ouvir

Para poder apreciar a sonata que acabou de compor

Restrinjo-me, com o passar do tempo a simplesmente imaginar alguns versos, rimar esta e aquela palavra no subconsciente

E isto cuidadosamente a fim de não me pesar por demasiado o fato de ter que desvendar a natureza do pensamento

Para nem sofrer por não ser capaz de exteriorizá-lo em forma de um soneto parnasiano requintado

Nem me afogar no próprio dilúvio efervescente deste meu discurso indecifrável, deste meu monólogo intraduzível concebido apenas dentro de mim

No porão mais escuro, na catacumba mais inimaginavelmente escondida e, no entanto,

Reluzindo pelas janelas da mente - as pupilas dilatadas, as íris decompostas em luzes -

Como uma torre de marfim, como um farol em tempos de tormenta

Como um forte fortemente guardado

De toda e qualquer investida estranha

Que venha abalar-me a alma inquieta

O coração em frangalhos

A mente incapaz de cerrar os olhos do espírito e sossegar pela eternidade do tempo incontável...

s.d.

F H Pupo
Enviado por F H Pupo em 19/03/2025
Código do texto: T8289243
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