DESAMANHÃS

— Não temes a morte?

Indagava-me Felisberto, com o peso de sua longeva existência sobre o dorso.

— Dela espero o convite para encontrar o que se perdeu de mim. Respondi—lhe sem ter a certeza do que procurava.

— O que lhe açoita o pensamento, então ?

Felisberto buscava em mim, uma resposta para suas cicatrizes.

— As vidas mortas, opacas de vivências...

— O silêncio mudo que não diz.

Desembainhei uma resposta filosófica da garganta.

Enquanto regurgitava os vazios, uma folha veio pousar em meu colo.

Não trazia a maternidade de árvore alguma,

mas apresentava os seus outonos.

Felisberto, perplexo, entregou-me uma outra folha que de tão branca convidou-me para uma viagem de trem às quatro estações.

Decerto o outono já não bastava no ensolarado papel, com aroma delicado de flores e gotas de orvalho.

A encarei com a voracidade de um inquieto sonhador. Empunhei uma espada de grafite e cortei sua superfície com alguns rasgos de lirismo.

Havia nascido um efêmero poema que a pálida folha carregou nos braços do vento.

Felisberto, curioso, tentou pegar o manuscrito. Eu lhe decepei a investida.

— Por que?

— Para que ganhe a vida e possa responder a todos, pássaros e passantes, a pergunta que fizestes no início desta conversa.

— Sobre a morte?

Retrucou.

— Sobre os temores.

O ancião calou-se. Ficou a imaginar entre os cansaços dos alquebrados anos o que poderia conter naquele papel. Secretamente desejou ser uma andorinha para capturar meu escrito.

Eu o observei com um laivo de compaixão.

Não quis desanimá-lo com revelações.

Felisberto há muito perdera a capacidade de sonhar os amanhãs. Tornara—se um triste Berto. Nada mais!

Foi então que descobri que este também era o meu maior temor.

Leonardo do Eirado
Enviado por Leonardo do Eirado em 12/05/2024
Código do texto: T8061895
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