Vôo
Um poema é um poema,
e não somente um poema,
mas tão somente um poema,
palavras que viajam e levam e trazem
desejos perdidos, pedidos,
renúncias,
carícias não dadas,
renovadas,
sabores e imagens,
amores e gestos,
cores e cheiros,
dores, lembranças ,
de tantos poetas,
e quanto de poeta em cada vida
e quantas vidas num poema
escrito no riso,
no choro,
na madrugada,
a qualquer hora,
e quanta vida tem um poema,
e quantas vidas num poema,
e o que é vida, caminho para a morte,
e o que é morte, senão um sono da vida,
de tantas direções,
de tantos planetas, galáxias,
num universo de palavras
onde se criam os poemas
tentando traduzir o tudo e o nada,
que nada no vazio onde tudo se comprime,
se exprime, se exime de existir, existindo,
e assim se expande, resplandece, desaparece,
para enfim reaparecer
fingindo nunca ter sido a luz que escureceu,
ou, quem sabe, que iluminou
o sono que gerou o sonho de existir,
de ser feliz,
de ser pleno,
sem os vícios de estragar o paladar da vida,
e eis de novo a vida que persegue o sonho,
e eis de novo o sonho
que segue a viagem no tempo
absoluto,
relativamente absoluto,
talvez absolutamente relativo
que teoriza o espaço, o corpo, a mente,
a mentira do ente, doente,
transcendente, transparente
que habita o sonho,
e eis de novo o sonho que persegue a vida
como querendo alcança-la, enlaça-la em si,
e quando cai em si, e se vê sonho,
simplesmente sonho,
para sempre sonho, chora tão comovente
que acorda a mente
que busca envolvente por um novo sonho,
que por novo busca a vida,
e eis de novo a vida sendo perseguida
enquanto o tempo,indiferente,
segue a sua jornada
pela longa madrugada
que amanhece,
e amadurece,
e anoitece
e acontece num novo sonho
que se repete, que reescreve o poema,
e as palavras esquecidas são lembradas
e tragadas, aspiradas, para inspirar o poeta
que nunca completa a poesia
que por teimosia tenta juntar
o sonho com a fantasia
que se extasia com a canção que o mundo ouvia
naquele dia da criação
e a melodia que explodia
na emoção de saber que tudo se fez
num momento único
de inspiração do Criador
que também sonhou e por sonhar criou a vida
com tanto amor que não poupou de poesia
o ser criado
que ora rola, embola em boa hora
a mesma história
repetindo o gesto primitivo da mutação
da tentação de ser além, de ser alguém,
que vai, que vem, mas fica aquém
da promessa que não prometeu
e por isso arde e alarde
antes que seja tarde
que lhe pese a idade,
que morra de saudades,
que lhe corroa o aço, o osso
ou que o fosso se lhe abra aos pés
e busca o norte de guarda no convés
e olha para a morte como um revés,
mas na verdade, a verdade não se revela,
e a mentira não se releva
dando a crer que por querer alcançará o vento
que sopra ao sul
enquanto a ave, a nave, o novo
alça vôo
e a neve
desce, descreve,
sublima a estação que a destrói
ou modifica os versos do poema
que gira, expira por fim, sem em si finalizar,
mas recomeça, sempre, no novo verso,
na nova vida
que refaz o ciclo quase perfeito,
mais que perfeito,
do presente, do passado, do pretérito,
do futuro mais que perfeito
que fica sem efeito quando o sonho se desperta
sem ter finalizado
e assim, magoado, recolhe o corpo e a mente,
que sente que mente,
que livremente sonha
e fustigada, aprisionada, condicionada,
busca a perfeição
perdida na ilusão de amar,
de achar que pode amar,
de se perder no mar do amor maior,
que se sente preparado a procurar palavras
e rasga-las, e reescreve-las, e recompô-las,
quando então separado novamente se perde
e busca se achar na imensidão
da contradição que a vida lhe apresenta,
que a vida representa no momento do tormento
do sonho que volta a habitar o ser e a poesia
como uma canção que repete o acorde, e morde, e fere,
o sentimento impaciente,
freqüente, latente de ser livre, e somente livre
e somente absolutamente livre
poder escrever o por fim,
como se verdadeiramente houvesse um fim,
para o sonho, senão o despertar,
e para a vida, senão o morrer
independente de querer morrer ou acordar
e deixar de viajar no espaço, no tempo,
no infinito que a si mesmo se limita, e se habilita
a ser a estrada, a entrada, a saída da vida
que forma, se torna, se aquece, se esquece da forma da fôrma,
e assim se perde, e nunca mais se acha
e na verdade nunca se perdeu quem nunca se achou,
tão pouco se encontrou quem nunca procurou,
quem nunca se deu, quem nunca sonhou
com a estrela possível de habitar
que porventura existe, subsiste, resiste, insiste em olhar a noite
e a esperar raiar o dia,
e ver raiar o dia para encontrar a noite
que no fim (do dia) existe,
que no fim (do ser) existe,
o olha que se engana quem acha a noite escura
e procura nela ou dela se esconder
por não perceber que a noite habita o dia,
que o dia habita a noite, tranqüilamente, solenemente
como só pode ser com quem em si habita
e se habilita a sonhar, a viver,
e eis o sonho e a vida
perseguindo o poema
e o poema se alimentando do sonho,
e da vida
que teme a sorte,
que teme a morte,
por não entender que um nome
é apenas um nome (de um homem),
que o sonho
é apenas um sonho (de um homem),
e que um vôo
é apenas um poema (de um homem)
e um poema é um poema,
e não somente um poema,
mas tão somente um poema...