TINTAS DE UMA DESPEDIDA
Vi gotejamentos na minha varanda,
do atelier do inquieto pintor,
acima de mim,
pingos multicores
fluídos de todos seus labores,
amores, suas dores.
Das noites febris,
das musas desnudas
em telas e camas,
escorria o sanguíneo vermelho,
selvagens paixões
picantes pincéis.
Gotas verdes
caiam silenciosas,
como tênues esperanças
que não se anunciam,
apenas se deixam existir
em desejos recolhidos.
Manchas pretas, volumosas,
que me lembravam hepáticos óleos,
azedados pelos ódios, outras exacerbações,
despencavam, ruidosamente,
do meu teto.
Líquidos brancos,
em diminutos volumes,
extratos de paz,
da aquarela plácida de tons suaves,
pinturas singelas,
depositados como plumas
no meu chão.
Muitos matrizes vieram compor
o caleidoscópio
que transformou
minha varanda
numa bolha de retalhos existenciais.
Elas estiveram ali por algum tempo,
tentando me dizer algo,
que no fundo nunca
pude compreender,
Talvez a sua alma policromática,
num suspiro de agonia,
pedisse para eu retratar
um quadro da sua vida
com o sumo das suas conquistas,
das suas feridas,
da sua estória
não pintada ou não vivida.
Não entendi o hipotético apelo:
Dispus-me apenas a fitar
com olhos perplexos
aquilo que julgava ser
o refugo ou o refúgio das suas
inquietações.
A chuva, porém,
entendeu melhor que eu
os anseios do artista,
e com seus braços
molhados de vento,
escoou aquelas tintas
para fora da minha janela.
E desde então,
nunca mais o vi,
ouvi o meu vizinho:
apenas o seu vazio.
Quando ando nessas ruas coloridas,
tenho impressão de sentir tua presença
a me espreitar,
com pincéis e tintas nas mãos,
como se quisesse me convidar
a partilhar teu último quadro,
antes do adeus.