os mortos

esqueci os meus mortos

lembro'me apenas os restos de rostos nos ossos...

os mortos não tem cabimento

cadáveres esfumaçados que fogem ao desaparecimento...

odeio os mortos

não trazem sentido à vida

não faz sentido senti'los vivos

não são o Nada

são só,

sob sete palmos de terra, pó

sobre a pira incendiada,

cinzas e fuligem...

os mortos nem tem culpa

jamais saem das catacumbas

somos nós, os pseudo'vivos

quem os pomos a andar e a falar...

depois não suportamos encontrá'los por toda parte

encerramos os ouvidos para não lhes ouvir os gritos...

tarde demais

os mortos já estão entre nós

mortos e confusos

coexistem em nossas memórias deles

não são o que foram em vida

são o que propomos que sejam...

pobres mortos

agora lhes tenho pena

sem deixar de odiá'los

a cada morto que revivo

quando leio'lhes poemas e teses e romances

quando escuto'lhes música e melodia e sermões

quando vejo'os quadros e filmes e esculturas

morro eu...

o saber é um eterno retorno

que não leva ao super-homem

ao super-eu

ao suprassumo existencial...

o saber leva aos mortos

os que já morreram

aos mortos por vir

os que ainda andam e respiram

e temem à covid

e temem aos fascistas

e temem ter a cor errada

na hora errada

da bala

da pandêmia

da tirania...

mortos, eu os nego

renego e conto

sois pois números

exatos e abstratos

paradoxo com que encho o travesseiro

fecho os olhos e durmo

morto também por uma noite

em que os mortos enfim descansam de mim...