AMARRAS
Não me dou bem com nós:
o discurso individual que autoriza
amarrar um jovem ao poste
é da mesma origem daquele
que coletivamente pretende
amarrar o país em uma cruz.
As amarras me são repugnantes.
Não me dou comigo mesmo,
nem mesmo comigo.
Não me dou com os imaginários,
com os salafrários
e tento fugir de uma vida
regrada ao salário.
Não me dou bem com as rimas,
não me agradam meus versos,
nem a letra que você
não vê da minha caligrafia.
Não me dou bem com a noite,
tampouco com o dia.
Não me dou bem com arte,
não me dou bem com o consumo,
não me dou ao relógio.
Nem me vendo.
Presto, mas não me empresto.
Não me dou ao mau humor,
pense você como bem quiser calar de mim.
As amarras lhe são usadas
para que faça você
a sua impressão de quem sou.
O verdadeiro cidadão de bem
não descumpre as regras,
ele apenas as converte
em matéria-prima
de seu permanente ódio.
As intolerâncias me são repugnantes.
Não me dou bem com os padrões
da subjetividade.
Ontem vi uma moça de corpo perfeito:
se me é prefeita a visão
daquele corpo
eu devo aos meus olhos ou
à coincidência de aquele corpo ter passado,
tão de repente, por aqui do meu olhar?
Quem dera fosse destino.
Quem dera não fosse eu treinado
pelo mundo das coisas e da publicidade
e pudesse ver então a aura
que envolve aquele corpo perfeito,
ou a alma que ali se esconde;
quem dera pudesse não eu achar
qualquer corpo perfeito;
mas, produto que sou:
o subjetivo então me acessa ao concreto.
Não me dou bem com a culpa.
Não me dou bem com a memória endoença,
não me dou bem com a ilusão
de que posso ser aquele
que tanto imagino,
não me dou bem com a certeza
de que não.
Não me dou bem com a ideia
de que preciso estar limpo,
despedido,
mensurado no ar e na água e no éter
e nas coisas mais leves que há;
não me dou bem em me pegar
pensando que pela moça perfeita
do corpo perfeito
eu deixaria que Os Lusíadas
se afogasse.
Não me dou bem quando me acho repugnante.
Não me dou com as isenções,
tenho peso do julgo que faço de mim.
E fico preso sob a viga.
Não me dou bem em prender a respiração.
Não sou dado aos mergulhos próprios da vida,
significa-me existir como completude;
basto-me;
esqueço quem não fui
e sou feliz com a sentença.
Jamais encontrei párocos
que se alimentam de fé.
Jamais vi profecias que se anunciam
antes da catástrofe confirmar.
Jamais vi alegria na moral dos outros,
jamais vi liberdade
– dentro ou fora –
da boca de quem ajoelha,
comunga consigo,
mas não desabafa.
Não me dou bem com catarses contidas.
Viver só se confirma na hemorragia.
Marx idealista ou materialista?
Que outra ruptura ontológica
haverá na obra humana?
Filmes idiotas atraem multidões,
músicas sem acordes ecoam,
o binômio não é tão
newtoniano
quando o imbecil coletivo
reproduz a ideia
de que a informação
seja conhecimento;
o estúpido não
conhece muita coisa,
apenas se informa.
Adam Smith é lido por quem?
Quem será capaz de
colocar
metafísica na oratória
aristotélica?
Ninguém será capaz de
inventar
Platão,
que criou Sócrates,
que sofismou sem parar.
Veneno na opção dos outros é folclore.
Espinhos no umbigo
da gente
é lenda dos milênios futuros.
Ninguém vê a luz através de
cabresto,
mas é tanto
desavisado que crê
na utopia
da falta de utopias,
confia naquilo que a si desconfia;
prefere se interessar
para não
se perder.
É muita gente
mugindo
e pouco capim
a nos satisfazer.
Não me dou bem com as euforias,
não me dou bem com o sossego.
Perdi alguém também querido,
mas não me dou com a morte.
Não me dou
com as cerimônias
e nem com a saudade.
Não me dou aos desgastes:
não me dou com a proteína,
não me dou aos carboidratos.
Não me dou ao egoísmo nem à solidariedade.
Sou um ser repugnante
como também é você,
uma vez que o que
repugna
são os outros,
outra vez
e quem merece é você.
Não me dou bem com os seus olhos
sobre minhas palavras,
não me dou com a sua leitura,
não quero a sua interpretação.
Deve estar você com raiva,
chegou aqui,
e nada encontra.
Não me dou bem com o fim da história,
não me dou bem com acabamentos,
não me dou com as formas
se o que me prega é a estrutura;
não me dou em me satisfazer, se, assim,
lhe satisfaço.
Não me dou bem em saber
que desabafei
para ninguém catalisar,
que transmutei sem dar lugar,
que radicalizei a nem gritar.
Ninguém lê alguma coisa só para sentir repugnância.
Hoje,
pelo menos hoje,
o dia lhe será
repugnante.
Não, não precisa me agradecer.