DEVANEIO ESCRITO

“Me coloco em frente a uma encruzilhada, diante do papel em branco.

Ele me encara, e eu segurando a caneta azul (quase no fim, de tanto destilar versos infinitos).

Passado um tempo – cinco ou dez que aparentam ser uma eternidade – as palavras e tudo que paira no ar, teimam em não chegar à mim.

Às vezes, isso me incomoda e me frustra. Mas só às vezes.

Em meu modesto ambiente, havia um silêncio preciso e necessário para não ferir a inspiração (como uma faca rasgando um tecido).

Porém, foi num delicado romper do silêncio que tudo mudou.

Vinha, ao longe, um som. Uma canção. Mesmo num volume baixo, não pude deixar de voltar minha atenção pr’aquela música.

Que bailava no ar, modestamente, e chegava aos meus ouvidos.

Era piano e voz, apenas. O que fortalecia a transmissão da mensagem.

A partir da primeira frase, abria-se uma tela imensa na mente e uma tecla “Play” iniciava um curta metragem (que estava mais para um trailer) repleta de cenas aleatórias e falas certeiras.

E a cada cena, fala, olhar dos personagens, deixava meu corpo trêmulo.

Uma espécie de vulcão humano que não continha lava, mas algo o queimava por dentro.

Um olhar e uma lua.

Um sorriso e a cor do cabelo.

A força do abraço e a intensidade dos beijos.

Lua saía, Sol chegava, e uma premissa de que algo bom surgia.

Diálogos intermináveis enfeitavam os dias.

A crescente certeza de chegar uma luz no fim do túnel.

O medo que fez morada em alguém.

A frase silenciosa dita olhos nos olhos.

A mão que segurava fortemente a outra, e que sugeria não largar. Nunca.

Risos constantes, o amor feito intensamente, e os olhares que não se apartavam.

E, dia a dia, a mesma premissa sendo ofuscada por uma nuvem estranha.

Uma pequena e carinhosa mensagem escrita num papel.

Uma cena imaginária de uma tempestade que lavaria a alma desses dois seres.

Uma aproximação intensa e veloz. Vivida na urgência de não existir amanhã.

Uma rocha gigante apareceu no meio da estrada, e trincou o asfalto de sonhos.

Um sentido de vida que findou na mesma velocidade que começou, quando cruzaram seus olhares.

Rápido e intenso demais.

Duas pessoas em caminhos opostos, e o desenrolar arrastado dos dias, compondo o cotidiano de cada um.

Acrósticos foram espalhados como cinzas em um jardim.

E caminhos poéticos serviram apenas para andar em círculos.

O largar da mão, um olhar indiferente.

Um grito e um “Adeus” que jamais foi dito. Por ninguém.

Eis que desperto de meu breve devaneio.

A canção já havia acabado. Cachoeiras jorravam de meus olhos.

O ar que entrava pelas narinas parecia um caminhão numa estrada esburacada: lento e cheio de dificuldade.

As mãos suadas já haviam largado a caneta, e o coração, antes acelerado, se acalma devagar.

A tensão se vai, o ar fica mais leve, e o mais importante aconteceu quando menos dei conta: o texto já estava escrito.”

Deixe Crescer
Enviado por Deixe Crescer em 16/02/2016
Código do texto: T5545514
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