Melancolia

- SARIRJA - Cidade paulista(ana)

Tempo estranho.

Estou vagando pela cidade

Não sei exatamente o porquê de estar fazendo isso,

Não estou andando,

Não estou correndo,

Não estou parado,

Não estou de transporte,

Estou vagando apenas.

Procurei casas noturnas...

Não encontrei nenhuma digna de minha presença,

Talvez eu esteja correndo perigo,

Andando à toa,

Vagando à toa.

Véspera de fim de ano,

Muitos estão felizes,

Cantando,

Gritando,

Brincando,

Talvez chorando até... Mas de felicidade.

E eu estou aqui,

Indiferente a toda tipo e forma de emoção.

Andar por uma cidade como esta,

Incontáveis vezes maior que a minha,

É estranho.

Procuro uma cerveja,

Uma bebida,

Um suco... Menos suco!

Bebida forte!

O farol parou,

Não conto os passos,

Vejo o farol,

Espero o carro,

São dez e vinte e sete,

Vinte e um graus.

Estou andando à toa...

Queria escrever,

Se soubesse,

Queria cantar,

Se soubesse,

Queria correr,

Se desse.

Fazer o quê?

Talvez eu esteja sendo seguido,

Talvez não.

Não sei!

Queria fazer uma ligação,

Mas para quem?

Ninguém precisa ouvir minha voz.

Fazer o que?

A cidade está parada.

Talvez todos estejam em casa.

Comemorando o quê?

Eu deveria estar em casa também.

Catando.

Mas já disse, não sei...

Comendo panetone,

Tomando vinho,

Ouvindo música,

Lendo um livro.

Mas isto me faz pensar que...

Talvez eu esteja perdendo meus vinte e sete anos à toa.

Sempre quis escrever algo,

Mas ninguém quer ler.

As pessoas não sabem ler!

Eu queria saber...

Eu me identifico muito com Charles Bukowski,

Era triste,

Allan Poe também!

Mas eram bem mais inteligentes que eu.

Neste momento passei por um homem aparentando o dobro de minha idade, ele estava sentado em um degrau baixo, de uma calçada aparentemente úmida e suja. Ele vagava em pensamentos, e seus olhos brilhavam ao olhar para o céu, seu corpo bronzeado e magro, agora imóvel no chão úmido daquela calçada.

Passei sem olhar para trás,

E neste momento deu-se um intervalo...

E se pôs de per, e estava agora me seguindo.

E pensei, a noite continua estranha, parei numa livraria, não soube o que comprar, não poderia comprar mesmo que soubesse.

A pessoa que me segue passou por mim e me achou estranho, talvez.

E disse o senhor Gudu, rompendo todo o silêncio e estranheza: “também, pudera!”

Também achei!

Eu me acho andando sozinho,

Andando à toa,

Vagando à toa.

Queria sentir algo,

Saber o que sinto.

Gritar alto,

Ter o que gritar.

As pessoas esperam pelo ônibus cantando,

Bebendo.

Olho para as paredes pichadas,

Grifadas,

Riscadas.

Sujas!

Expressão de arte, “os muros falam”, dizem...

- GUDU - Estou vendo um cachorro passear com seu dono, queria também ter um cachorro para passear comigo, me levar ao parque, para me guiar por esta cidade. Cidade estranha, sem sol, sem lua, sem nuvens e talvez até sem céu.

Se chovesse seria bom.

Mas estou desprevenido,

Sem guarda-chuvas,

Sem amparo,

Sem amigos.

- SARIRJA - Mas agora ao vê-lo passar por mim, me pus a segui-lo, calado em meu lugar de inconveniente perseguidor, ouvindo seus sussurros, tão claros para mim quanto meus próprios pensamentos.

Vejo os hotéis,

Estacionamentos,

Pouco dinheiro no bolso,

Sem motivos para parar.

Espero no cruzamento,

vou atravessar.

Altedors... vinte e um graus,

Dez horas e trinta e sete minutos.

- GUDU - Escarro no chão, cuspo no cão, piso no cuspe. Vejo um companheiro dormindo ao céu, mal agasalhado, coberto de papel.

- SARIRJA - As vezes sinto inveja.

Realmente!

Enfim...

Encontrei com um entregador de jornais,

Nunca soube como isso era feito,

Achei que brotava do nada,

Com notícias do nada,

Dizendo nada para quem as quisesse ler.

É estranho demais!

Mesmo assim, é triste também.

Estou suado,

Estou bem vestido,

Estou inaugurando um sapato novo,

Uma meia nova,

Mas para quê tudo isso?

Estas perguntas são inúteis demais,

Não definem nada!

Não cobram nada de ninguém.

As pessoas não as respondem,

E não sabem porquê,

Não sabem responder.

Realmente...

Eu deveria estar em casa lendo um livro,

Perdendo tempo,

Aprendendo nada.

Para nunca usar o que aprendi?

O que eu deveria fazer, então?

É triste demais!

- GUDU - Estou indo para longe,

Talvez não saiba voltar,

Não sei para onde estou indo,

Mas eu chegarei lá.

- SARIRJA - Realmente, eu queria estar descalço, este sapato novo não é confortável, esta roupa não é ideal. Mas de novo, para que tudo isso? Não posso jogar, me desfazer disto, ficar nu, quase nu, seria desconfortável para os outros.

- GUDU - Eu não me importo com minha nudez,

Não me importo em estar sozinho,

Não me importo em não ter o que comemorar.

O natal já passou,

Jesus morreu,

Talvez volte,

Espero que volte.

- SARIRJA - Voltará!

- GUDU - Se ele voltar, como dizem os outros, eu fico.

Ficarei!

De novo, como sempre fiquei quando todos os outros foram embora.

Vieram buscar o que tinham para buscar e eu nunca fui um motivo de voltar. Encontro-me de novo com um companheiro agasalhado no chão.

- SARIRJA - Com uma bíblia na mão,

Dormindo.

Sonhando sabe lá o quê?

Talvez esteja melhor que eu.

Sempre estão.

- GUDU - Queria que fosse dia.

Queria que o dia estivesse amanhecendo,

Mas é tarde,

É noite.

- SARIRJA - São vinte e duas horas e quarenta e dois minutos.

Passamos diante de um hospital, impossível ver o que tem dentro.

E neste momento ele disse: “eu sei o que tem lá dentro, você sabe o que tem lá dentro.”

E voltou-se para mim, com aquela barda multiforme, olhos brilhantes e voz grave, muito grave, quase rouca. Se pôs do meu lado, apresentou-se “cordialmente” e apertou-me a mão.

Sua mão calejada, e grande, seus dedos eram tortos, notei que ele não possuía algumas das unhas daqueles dedos longos e curvados sobre a minha mão.

- GUDU - Ninguém queria estar lá. – Repetiu.

Ninguém quer estar em um hospital,

Num funeral...

Ninguém quer.

- SARIRJA - Estávamos andando a pé,

Agora sim,

Sei o que sou,

Agora sim,

Sei o que faço.

Não ando sozinho,

Contando os passos.

Queria parar e pensar no que digo.

- GUDU - Perder tempo de novo!

Talvez queira correr?

- SARIRJA - Se pudesse.

(Meus pés doíam, sapato ruim, desconfortável, como já disse: queria estar descalço).

- GUDU - Todos que me veem me acham louco,

Também, pudera!

A rua está deserta,

Estou sozinho de novo.

- SARIRJA - disse, como se não me visse ao seu lado, como se não fosse possível me ver ao seu lado.

- GUDU - Ninguém adiante,

Talvez,

Todos atrás.

Não sei mais o que sou.

Como já disse: também, poderá!

Olho os muros que falam sozinho,

Iguais a mim,

Olhando para mim,

Sorrindo.

- SARIRJA - É linda!

Pensei em atravessar a rua, (talvez para fugir daquela loucura que me acompanhava).

É uma avenida,

Não vem carro,

Não vem moto,

Vem um ônibus.

- GUDU - Também, pudera!

- SARIRJA - É, vou atravessar.

Olhar para os lados,

Contar os passos,

Passar para o outro lado.

Pulei a cerca,

Mas ele estava velho.

- GUDU - Não sei pular.

- SARIRJA - Atravessei correndo olhando para os lados,

Vi um pássaro,

Um morcego, talvez.

- GUDU - Quero ver de perto que está escrito,

Quero ver de perto o que está desenhado,

Quero ver de perto o que é tudo isso.

- SARIRJA - E eu queria ver de perto,

Andar do lado, “também, pudera!”.

São expressões realmente divinas,

São expressões realmente artísticas.

Estávamos, de novo, caminhando na mesma calçada, de alguma forma ele passou por aquele cerca de proteção, a qual dividia a avenida ao meio. Paramos em um ponto de ônibus, não havia ninguém e ele disse: “estou sozinho de novo”.

- GUDU - Eu sei...

Um dia serei louco,

Eu sei, sou quase louco,

Eu sei, estou ficando louco.

- SARIRJA - “Também, pudera!”

Só penso nos livros que deixei para trás,

Penso no tempo que perdi,

Só penso na distância que estou...

- GUDU - Quando atravessava a rua pensei,

Olhando para os lados,

Olhando para frente.

Por que não vejo pessoas bonitas?

Não vejo pessoas que me inspiram?

Não vejo mulheres?

Não vejo homens?

Não vejo cachorro?

Gato?

Galinha?

Macaco?

Tudo eu veria se eu tivesse, talvez na minha cidadezinha.

Ah! Encontrei um pombo,

Uma pomba, talvez,

Sozinha,

Triste,

Doente, igual a mim.

- SARIRJA - Eu deveria ficar olhando,

Cantando sei lá o quê,

Jogando-lhe migalhas que tivesse no bolso...

Naquele momento o senhor Anatônio Gudu saiu correndo, em disparada, na mesma direção de onde vínhamos. Eu também quis fugir. Eu poderia estar gastando dinheiro em um bar qualquer ao lado de pessoas anônimas, pessoas tristes como eu, sem ter o que comemorar, realmente, a noite estava deprimente.

Ele escarrou no chão, de novo.

Talvez estivéssemos andando, à toa. Ele já estava a uma distância considerável, mas pude perceber que estava olhando para o lado, à toa, falando à toa.

E neste momento também escarrei no chão, em uma tentativa medíocre de imitá-lo, e senti naquela mesma noite, véspera de fim de ano, que acabara de conhecer uma singular figura, Antônio Gudu, um nome muito comum para tão raro personagem. E nesta mesma noite segui sozinho até onde meus castigados pés puderam me levar, parei em um bar o qual não me recordo o nome, nem tão pouco o que bebi naquela noite.