PAI
“Pai, afasta de mim este cálice...” Rogo-te.
Uma lágrima caiu quando me lembrei de você.
Percebi que sua figura nebulosa está para mim.
Já não me recordo do timbre da sua voz
Já não sinto teu perfume quando sonho.
Pai, você não foi meu herói.
Preferiu ser meu bandido.
Nem sequer foi meu amigo.
Sempre me deixou sozinho a brincar,
Sobre sua capa eu não pude voar.
Fui buscar na memória
Aquela sua risada,
Encontrei a mágoa gerada
E uma insatisfação que fim parece não ter.
Pergunto-me por que sou assim
E hoje vejo com clareza
A falta que me fez
Um pai pra eu chamar de meu.
Não fui à escolinha de futebol com você
A minha pipa não voou,
Meu carrinho derrapou,
A primeira barba você não acompanhou
E o primeiro beijo você ignorou.
O amor inocente das crianças
O livrou da condenação que a falta
De pensão lhe ocasionaria.
A revolta adolescente me fez brigar
Com a mãe que nada fez pra você a abandonar.
As pernas se alongaram
As feições mudaram
O menino que se escondia na saia materna
Virou homem que percorre o mundo
Nômade solitário.
Sofro porque pelas ruas ando
A procurar por seu rosto
Que só me deu desgosto
Caminho pela multidão
Na esperança contida de te encontrar
Na vontade imensa de te abraçar
E na loucura de achar que ainda existe chance para nós.
Os capítulos desta vida
Continuo a escrever
Daqui a algum tempo
Meus filhos vão nascer.
Pena que você não vai ver.
Seus netos gostariam tanto de te conhecer.
Pena que você não vai ler.
O que escrevo tem destino certo, e é pra você.
Pena que eu vim de você.
Minha sina, meu carma, minha cruz, meu pai.
Talvez o mundo não seja pequeno
Cale-se!
Nem seja a vida um fato consumado
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