COM FRIEZA
Desejo esculpir o inverno
Brindar com a mágoa que não há
Na gente e nem dentro dos outros.
Pés-de-neve, mãos geadas, orelhas de orvalho,
Inverno adentro, seremos obra,
Tirar excesso da pedra fria
Colocar fidalguia nos cobertores de lã
Inventar matéria-livre inacabada
Obra-prima de consenso popular e
Vanguarda à parte, estética que outros
Verão.
Pretensão de inocular-se à eternidade,
Passeio sensível pela ambição humana
Particular seja o bom desejo
Daquele que tenta insidiosamente
Cravar seu nome em fé lavada
Na água corrente da margem dos outros.
Seremos nós deste tempo
A presenciar tal escultura
A ver-se a nós em prosa cume
Nos arquivos da cultura historiografada.
Mal conjugados seremos nós
Testemunhos sem substantivos,
A perceber, sublimes de encantamento,
vemos liras nos poemas talhados ao vento.
Desejo esculpir o inverno
Fazer choupana com telhado de gelo, que seja, mas telhado,
Plantar laranjeiras na neve
Algodoeiros genes de panos que criam calor a todos
Que nenhum braço se desampare
Que nenhum olhar congele.
Desejo esculpir um inverno morno
Nos lugares de quem vive às ruas
Nos telhados de quem não tem telhado
E crer nessa obra-prima
A vigor em ser outro
O calor de ser humano
A vertigem de poder-me a eternidade.
O primeiro vence
Ou o segundo fica?
O que quer a gente de verdade,
Que vive e apenas sabe viver em meio a gente de verdade
Mas prefere de mentira?
Quem de mim precisa ser eterno, afinal?