O Homem Light

ando a reler, com renovado  entusiasmo, no pouco tempo que tenho à disposição
nestes ofegantes e agitados meses de Verão, é um livro que me ficou no gosto desde
os tempos de estudante: O Homem Light, uma vida sem valores, de Enrique Rojas.
Se antes o li entre quatro paredes, na ingenuidade deum discente curioso que se
atrevia a perscrutar um pouco a realidade humana e social que iria enfrentar um dia,
hoje faço-o, convencido e afirmativo, com a constatação e alguma experiência que me
foi dada a sorver, no palco da vida. Temos de repensar o rumo que o homem seguiu nas
últimas décadas, cego pelo bem-estar acima de tudo e a todo o custo.
Nos últimos anos, uma série de produtos light invadiu o mercado, facilmente ao nosso dispor em qualquer hipermercado. São produtos que foram alterados na sua identidade, nomeadamente no grau de gordura ou açúcar que oferecem, para não serem tão nocivos à saúde e para satisfazerem os níveis de elegância e estética que o homem contemporâneo
prolatou.
Andam por aí cerveja sem álcool, manteiga sem
gordura, açúcar sem glicose, tabaco sem nicotina, coca cola sem cafeína, vários produtos alimentares com poucas calorias e com pouca gordura. Alguns especialistas já alertaram que estão cheios de mentiras e que as substâncias que são adicionadas para a sua mutação poderão não ser as mais saudáveis. Mas como o homem atual é escravo da sua imagem, em nome dela está disposto a tudo. Ainda não se lembraram de fazer queijo da serra light (pelo menos que eu saiba), e espero muito bem que tenham um ataque de amnésia. Será um atentado inaceitável ao honroso queijo serrano e aos abnegados pastores, que enfrentam intempéries de toda a espécie, para oferecem ao mundo uma das suas melhores iguarias.
O que são, afinal, os produtos light? São produtos que perderam a sua essência, o seu conteúdo, a sua alma, o seu sabor. Ainda sabem a alguma coisa, mas correm o perigo de
não saber a nada. Querem ser tão suaves e leves, que pouco faltará para serem reduzidos
a nada. Segundo a opinião de Enrique Rojas, depois da queda dos totalitarismos e da crença
nas ideologias, que dominou grande parte do século vinte, e na senda dos produtos light, nasceu também «um homem light»: «um homem sem essência, sem conteúdo, sem valores, entregue ao dinheiro, ao poder, ao êxito e ao prazer ilimitado e sem restrições»,
um homem «que tem por bandeira uma tetralogia niilista: hedonismo (prazer),consumismo (ter e desfrutar), permissividade (vale tudo) e relativismo (subjetividade).
Todos eles impregnados de materialismo.» Não nos é difícil constatar isto. São estes os valores que atualmente fazem correr a maioria das pessoas. Mas ,são estes os valores que dão solidez e sentido à vida? «O homem light carece de pontos de referência, vive num grande
vazio moral e não é feliz, ainda que tenha materialmente tudo», afirma o autor.
É certo que o período dos totalitarismos, onde predominou o autoritarismo, o terror, a opressão, a violência, o desrespeito pelos direitos humanos, lançou a suspeita sobre os princípios e os
valores, minou a vontade de se entregar a algo ou a alguém, e despoletou a ânsia coletiva
da eclosão de um tempo de exercício da liberdade, e o desmoronamento das ideologias torpedeou o empenho por mudar a sociedade e se entregar a causas e a ideais, e afagou a desilusão e o desencanto, mas o homem que surgiu despois daquela época tenebrosa também
está muito longe de poder concretizar a realização da sua humanidade. Nas palavras de
Enrique Rojas, desabrochou um homem relativamente bem informado, mas com escassa educação humana, entregue ao pragmatismo. Tudo lhe interessa, mas só em nível superficial. Não é capaz de fazer a síntese daquilo que recolhe e, por conseguinte, é um sujeito trivial, vão, fútil, que aceita tudo e não tem critérios sólidos na sua conduta. Reveste-se
das seguintes características :«pensamento débil, convicções sem firmeza, apatia nos seus
compromissos (que reduz ao mínimo); indiferença feita de curiosidade e relativismo ao mesmo tempo; a sua ideologia é o pragmatismo e o imediato; a sua norma de conduta é o hábito social, o que se tolera e o que está na moda; a sua ética fundamenta-se na estatística, substituta da consciência; a sua moral, repleta de neutralidade, falta de compromisso e subjetividade, é relegada para a intimidade, sem se atrever a
vir a público». Diagnóstico soberbo. Eis alguns frutos do homem light: crise e ruptura do casamento, o drama das drogas, o culto da noite (muitas vezes para esconder um dia sem metas, sem sentido, sem objetivos e sem ideais), o absentismo ao trabalho, deterioração das
relações humanas, decréscimo da educação, enfraquecimento das associações e do espirito
associativo, individualização em detrimento da sociedade ou da comunidade, entre outros.
Estes tempos convulsos que vivemos, que são consequência do homem light que reinou nos últimos anos, devem-nos despertar para uma nova concepção de ser homeme de ser sociedade, um novo paradigma de que já muitos falam, mas um novo paradigma que não tenha medo de encarar a verdade mais profunda da vida e do homem, na resposta aos anseios mais profundos do coração humano, e que procure o que é mais nobre e digno do ser humano. Enrique Rojas deixa-nos a sua solução: «Frente à cultura do instante (uma existência inútil) está a solidez dum pensamento humanista; frente à ausência de vínculos, o compromisso com os ideais. É necessário superar o pensamento débil com argumentos e propostas suficientemente atrativas para o homem, de forma a possibilitar que este eleve a sua dignidade
e as suas pretensões», «há que conseguir um ser humano que esteja disposto a saber o que
é bem e o que é mal; que se apoie no progresso humano e científico, mas que não se entregue à cultura da vida fácil, onde qualquer motivação tem apenas como fim o bem-estar,
um determinado nível de vida ou o prazer sem limites. Um homem consciente de que não pode haver verdadeiro progresso humano enquanto este não se desenvolver numa base moral».


                         Padre Vitor Pereira - Montalegre - Portugal