Um Dia de Primavera
Um Dia de Primavera
Um dia de Primavera, não resisti,
voltei ali. Não me detive na aldeia.
Fui logo para aquele monte,
Aquele perto da fonte.
Estava com sede bebi.
A água jorra da pedra.
Não sei como isso se deu.
Veio do alto da serra,
Correu por debaixo da terra.
E foi ali que nasceu.
Era sede de água pura.
Era sede de brancura.
Era sede de gritar para aquela
fonte que fiz acontecer.
Que sou o que queria ser.
Corri pelos lameiros da minha infância.
Brinquei com pássaros e grilos.
Chapinhei naquele regato.
Como ninguém me via.
Cantava, dançava e ria.
Se fizesse isso na aldeia, coisa feia!
Mas ali valia tudo e tudo valia a pena.
Em meio a tanta folia ia chegando a alegria.
Ai que prazer!
Estava ali para me vingar.
Aquela fonte ria de mim quando me via a sonhar.
Vim te dizer que aprendi a navegar.
Meti-me pelas minhas entranhas e fui assim
até me encontrar comigo e com os demais amigos
que vivem dentro de mim.
Lá fora, outra hora!
Amei perdidamente uma alma nobre.
Um coração acetinado.
Não era um príncipe encantado.
Era só o meu namorado.
Matei a saudade a pedradas e a enterrei.
Só a terra é capaz de a deter.
De a não deixar ressuscitar.
Voltei aqui para te dizer que joguei fora
aquela vontade de ir embora.
Matei a ânsia da minha infância.
Voltei aqui para rir até me fartar das
bobagens com que andava a sonhar.
Voltei para te contar que descobri o
teu segredo.
Água que nasce num penedo é água
que perdeu o medo.
Rainha das águas puras, como sabias
quem eras, abriste caminho entre as
pedras.
Contigo aprendi que água para ficar pura
tem que passar entre pedras rascanhosas,
Por fendas sinuosas e para ficares mais
Pura ainda, cada fenda que te limpou para
trás ficou.
Queria te agradecer, foste o espelho que tinha.
Mostravas-me quem eu era, apontavas-me o
que vinha.
Falavas-me de outros mundos e me punhas a sonhar.
Vim aqui para me vingar.
Porque me deixaste partir sem me
avisares dos perigos que precisei enfrentar.
Podes não acreditar, mas vi até o diabo.
É mesmo como o pintam, um homem muito feio
com chifres e com rabo.
Tu o conhecias bem, achavas que nunca se atreveria
a vir ter comigo também?
Chegou bem na pior hora.
O diabo é assim, fica sorrateiro a esperar que caias
e fiques sem forças para te levantares.
Como se enganou aquele diabo.
Uns metros à frente, ergui-me de repente.
Criei coragem.
Lavei-me, troquei-me, retoquei a maquiagem
e segui viajem.
Joguei fora aquela roupa, e a lama que jogou
em mim.
Acho que entendeu.
O recado estava dado.
Nunca mais apareceu.
Mesmo assim achei por bem voltar.
Deixar esta água correr entre os meus dedos.
Pedir-lhe: lava meus medos, meus segredos.
Vou beber desta água pura.
Vou me encharcar por dentro e por fora.
Vou chamar as forças da natureza para
este ritual.
Sempre estiveram aqui junto de ti.
Água que sai de um penedo, é água que
afasta o medo.
Aprendeu com a idade a se livrar da maldade.
Espantou fantasmas, demônios.
Aquietou o espírito para mais forte ficar.
E seguiu por entre as eras abrindo caminho
entre as pedras.
Vou acender uma fogueira.
Vou fazer uma queimada, daquelas
bem preparada.
Capaz de exorcizar qualquer mal a
me esperar.
Vou cercar esta fogueira com o teu regato.
Quero que participes do ato.
Vais ser parte do feitiço.
- Beijo de mulher bem amada vem te juntar
à queimada.
- Alma de criança bem nascida vem fazer a
vida apetecida.
- Verdes campos do lugar.
Verde, de fazer o pão nascer, entra nesta queimada,
enche de saúde e fartura toda a criatura.
- Céu azul, lindo de se ver, derrama aqui teu poder.
Nuvens brancas a chegar, devagar, bem devagar,
polvilhai esta queimada com a vossa água iluminada.
- Raios do sol entrai, colocai aqui a essência da nossa
existência.
- Inteligência Cósmica, Providência Divina, benevolente
desce docemente.
Acrescenta a esta queimada o sabor e o odor que esta
Morada vai ter quando o mal desaparecer.
Vou beber até me fartar e oferecer a quem por aqui passar.
Lita Moniz