IR
IR
É melhor deixar os pés no vento e na água e ir embora de si
Deixar-se por inteiro e ir
Deixar os olhos e a boca e o corpo e ir
Deixar números e nomes e burocráticos papéis e ir
Deixar contas e repressivos quartéis e ir
E ir longe longe
Até não mais enxergar o que quer que seja
É melhor deixar as mãos no vento e na água e ir embora de si
Deixar-se por inteiro e ir
Deixar sentidos e histórias e ir
Deixar as cidades e as suas telas e pincéis e ir
Deixar as ruas e seus menestréis e ir
E ir fundo fundo
Até não mais sentir o que quer seja
É melhor deixar o coração sem momento e sem tempo e ir
Deixar-se por vontade e por direito e ir
Deixar danças e festas e ritmos sem fim e ir
Deixar tudo e tudo e tudo e até mesmo o poema
E ir solto solto
Até não mais ser o que quer que seja
E depois, depois disso tudo,
Ver e sentir e ouvir e tocar e amar
As águas e as correntes e o sol quente
O vento no corpo e no rosto a arder na gente
As risadas e as palavras a jogar semente
E depois, depois disso tudo,
Gozar o poema vivo e inteiro
Ser o poema sem palavras
Ser uma humana criatura estupefata
Diante da explosão da própria vida
E depois, depois disso tudo,
Perceber que o melhor era mesmo deixar-se
Para achar ao longo do caminho a graça das coisas