HIBERNAÇÃO AÉREA

estou hospedado em um avião

longe da terra

longe do céu

a minha vida em suspensão

observador indiferente da miséria humana

a dor do outro não me dói

dói a minha dor por não poder cessar a dor do outro,

não olho para o caos

vejo o caos ao fechar os olhos, o caos me habita

em mim é sempre o começo

todavia não é o caos que conheço nas pessoas que desconheço

nestas há a desordem, a falta, a carência

minha carência é sempre de amor

amor de alcovas, deixo claro

não me falta sede, fome, solidão

não me falta angústia por quem falta

água, comida, companhia

ando vazio de faltas

nesta minha hibernação aérea

passo nuvens (as que eu fui)

passo sois (os que quis ser)

passo pastos de bois humanos urrando a falta de curral

nem os sonhos são livres

nem as asas são leves

nem o amor é risível (somente o Kundera pode dizer o contrário)

turbulência ou céu de brigadeiro?

já não sei o que prefiro

nunca fui dados a escolhas

as opções é que me elegem

guiam-me como quando criança cria que a mão de deus me guiava

e foram tantos os caminhos tortos que achei que ou não havia o tal deus

ou sua mão era tão suja que não merecia segurar a minha,

e desde então sigo só

neste meu vício de fazer a humanidade feliz

contradição biológica se pensarmos no individuo

contra-senso sociológico se pensarmos no rebanho

apanho, caio, dói e não me levanto

aperto o cinto e me encolho no assento

o avião um dia também vai cair

mas é em seu vôo cego que me sustento,

estou hospedado

estou sedado

ciente que lá embaixo tudo continua tão visceral,

não me atinge

já nasci ferido

o poeta me nasceu

o poeta só nasce da dor

finge existir a beleza

finge poeta,

a vida não merece tua perda...