Fim de tarde de inverno
Abro a cortina da janela
Para um horizonte de bruma densa.
No aparelho de som,
Bethânia e Edu Lobo cantam Pra dizer adeus.
Visto-me de tédio:
Minhas sensações emergem do poço escuro de quem sou,
Lassas, entorpecidas, ébrias de cansaços caducos de serem
Qualquer coisa que passa ao largo de mim
Como embarcações à deriva . . .
Ah! O não passar com elas
Faz rebentar em meu pobre coração
Uma dor enorme como os desertos
Ao entardecer . . .
Bebo absinto para aquecer minha alma.
O velho casaco jeans, desbotado pelo tempo,
Que me deste de presente,
Incita-me a lembrança de tua presença aconchegante.
Penso em ti . . .
A lembrança de ti vem confusa e
Dissolve-se como fumo de embarcações
Vistas de longe, na imensidão do mar . . .
Na parede da memória estão expostas cenas de outros invernos,
Talvez mais felizes, porque estavas junto a mim . . .
Ah! Astrud, como me torturavas,
Na quietude das tardes infindas, diante da lareira,
Ouvindo Schumann , , ,
Até essa lembrança põe brumas em meu horizonte . . .
Penso nisso e uma nevasca polar
Desaba impiedosa sobre o chão de meu psiquismo . . .
Desmorono-me como um velho casarão mourisco
No ocaso ensangüentado de uma Marrakesh pululante . . .
Insurjo-me dos escombros inebriado de saudosismo antiquíssimo;
Refaço-me, esfacelando-me no sumidouro
Do espelho fictício no qual me retrato heterogêneo . . .
Eu, menino dos vales, rodopiava exuberante,
Até perder-me de mim pelos campos de trigo em ouro,
Pelos campos de alfazema em flor,
Outras vezes, sonhava delírios de grandeza,
Pelo jardim em flor:
Ah! Os girassóis de minha infância perdida;
Os lírios em sua brancura de neve -
lembrança esgarçada da pureza perdida;
As rosas vermelhas, rubras de pasmo antecipado
De meu desavir-me -
testemunhas silenciosas de minhas mágoas futuras! . . .
Da janela do velho casarão, avistava-se uma cortina
De montanhas majestosas em seu alheamento de esconderem
Palcos onde os homens se fingem outros . . .
Imensas montanhas azuladas pela distância,
Distância que limitava minha visão pueril do mundo . . .
Sonhava deslumbrado com as luzes de néon
Das cidades apopléticas com suas vitrines,
Que são labirintos de se perder,
Que refletem a verticalidade da vida urbana,
Que refletem as dores indisfarçáveis, indecifráveis
Dos notívagos que lotam os bares,
Que perambulam pelas galerias, pelas ruas escuras,
Pelos becos em busca de algo impossível . . .
Ah! Astrud, quantos despropósitos em meus devaneios:
Não julguei que perder-me-ia de mim, de ti, de nós . . .
Quantos dissabores põem-me um gosto amargo na boca,
Obscurecem meu horizonte e levam-me por descaminhos,
Por abismos com pontes erguidas com pilastras de meu tédio infindo . . .
Cerro a cortina com uma indiferença afetada.
Acendo um cigarro, bebo mais absinto, fumo ópio . . .
Sento-me diante da lareira vestido de alheamento . . .
Ouço Chopin . . . Inundo-me de saudosismo . . .
Embrenho-me em meu mundo de recordações,
Resignado, como convém a um velho lobo do mar . . .
Oliveira