CHUVA

Da dispersão das coisas restam os restos

Partículas, gotas, poças e os passos.

Apenas um senão no espaço

Abre-se a cortina

Nuvens grossas, negras, cinzas.

Cinzas são os pensamentos:

o mundo é grande

o mundo é pequeno

o mundo é o mundo

para tantas sensações.

A chuva se dissipa no ar

um ar frio, ar de inverno

em que casas se encolhem

prédios se afastam

ao longe o mar

muito longe o mar

tão longe que nem a concha vermelha

é capaz de falar das ondas

a água é tanta

o onda é vária

o mar é longe

mas a voz sobrevem sobre as palavras escritas

a mesma voz espessa e rara

voz das sombras

voz das brumas

voz do nada

que embaça o olhar e o vidro e a janela

a rua que não se vê

a rua que está ali

onde árvores balançam sem cessar

restam partículas de água que escorrem lentamente das paredes

é sede

a sede da voz

as ruas são grandes

as ruas são pequenas

para tantas luzes que se acendem.

O tom cinza das horas

torna-se pardo, violeta, azul

um mar escuro de pontos brancos luminosos

os versos são muitos

os versos são poucos

para escutar na concha vermelha

o ruído do mar

como olhos vivos e vorazes

que deixam num fio de luz o rastro do tempo.

Os homens passam

passam como as horas

como a chuva e a rua e a concha

no desespero do tempo

passam como a nau desavisada

num sonho mau

que não passa.

A concha, de buracos minúsculos,

escorrega pela rua

e assim, como o tempo das coisas

e o tempo do tempo

ali fica, imóvel, sem desejo

a espera de mais tempo

que a envolva em poeira e lembrança

quando, numa tarde de chuva

se liberte da velha casca vermelha

a voz do mar.

CAMPISTA CABRAL
Enviado por CAMPISTA CABRAL em 13/10/2009
Código do texto: T1863999
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