CHUVA
Da dispersão das coisas restam os restos
Partículas, gotas, poças e os passos.
Apenas um senão no espaço
Abre-se a cortina
Nuvens grossas, negras, cinzas.
Cinzas são os pensamentos:
o mundo é grande
o mundo é pequeno
o mundo é o mundo
para tantas sensações.
A chuva se dissipa no ar
um ar frio, ar de inverno
em que casas se encolhem
prédios se afastam
ao longe o mar
muito longe o mar
tão longe que nem a concha vermelha
é capaz de falar das ondas
a água é tanta
o onda é vária
o mar é longe
mas a voz sobrevem sobre as palavras escritas
a mesma voz espessa e rara
voz das sombras
voz das brumas
voz do nada
que embaça o olhar e o vidro e a janela
a rua que não se vê
a rua que está ali
onde árvores balançam sem cessar
restam partículas de água que escorrem lentamente das paredes
é sede
a sede da voz
as ruas são grandes
as ruas são pequenas
para tantas luzes que se acendem.
O tom cinza das horas
torna-se pardo, violeta, azul
um mar escuro de pontos brancos luminosos
os versos são muitos
os versos são poucos
para escutar na concha vermelha
o ruído do mar
como olhos vivos e vorazes
que deixam num fio de luz o rastro do tempo.
Os homens passam
passam como as horas
como a chuva e a rua e a concha
no desespero do tempo
passam como a nau desavisada
num sonho mau
que não passa.
A concha, de buracos minúsculos,
escorrega pela rua
e assim, como o tempo das coisas
e o tempo do tempo
ali fica, imóvel, sem desejo
a espera de mais tempo
que a envolva em poeira e lembrança
quando, numa tarde de chuva
se liberte da velha casca vermelha
a voz do mar.