Prolixo

Madrugada. Intensidade vazia das coisas. Tudo dorme.

Um sopro frio, vindo das profundezas da noite, gela-me a alma.

Sinto-me desterrado de corações, sozinho na noite suburbana de mim próprio.

O apito de um trem, ao longe, fere o silêncio fechado de todas as portas.

Sinto-me lacônico, indecifrável, perdido de mim mesmo, fora de meu alcance.

Minha glória crucificada, minha realeza ursupada.

Uma vaga sensação de tédio invade a periferia de minha alma.

Abro a janela. Tudo lá fora é suave, mas aflinge-me como a sensação

De um império de ruínas angustiadas,

De cansaço crepuscular de vago outono que recordo e que nunca vi.

Pesa-me toda a minha vida morta, todos os meus sonhos faltos . . .

Murcharam todas as flores de meu jardim, murchas assim, são outras flores,

Mais antigas, mais nobres, vestidas de amarelo morto

Misturado com o mistério o silêncio e o abandono . . .

Ah! A criança que fui, extraviou-se numa curva do passado . . .

Hoje, já não espero nada nem me desespero por nada;

Entristece-me quem nunca fui e dói-me na alma de meu pobre coração

A incerteza do que farei de mim . . .

Tento recompor-me, mas desintegro-me como folhas secas planando atônitas

Na verticalidade da queda inevitável nos abismos de minha alma . . .

Sento-me à escrivaninha, envolvido no silêncio de meu desassossego,

Mas minha mente vagueia indócil por seus desertos sem oásis . . .

Debruço-me sobre os rascunhos de textos cheios de lacunas,

Estranhos como portões de ferro abertos numa quinta abandonada . . .

Confundo-me com os rascunhos, fabrico imagens desconexas:

Ânsias de coisas impossíveis, saudades do que nunca houve,

Desejos do que poderia ter sido, desgosto anônimo de todos os sentimentos,

Mágoas intensas vestidas de âmbar, perfume ocasional de flores mortas,

Ocaso de quem sou numa planície de trigo em ouro,

Tristonhos juncos às margens de um rio com um cais sem embarcações,

Labirintos de minha alma . . .

Ergo os olhos para a janela fronteiriça, atropela-me uma saudade anônima,

Prolixa e incompreendida, convalesço-me estéril e longínquo . . .

Retorno aos rascunhos. Experimento a eliminação de todas as lacunas.

Componho frases inteiras, perfeitas palavra a palavra;

Sinto o movimento coerente, coesivo e verbal em todas as palavras,

Mas, de repente, extravio-me e a lógica da estrutura,

A concatenação orgânica das idéias esvaem-se-me num desconsolo enorme,

Tropeçam no antagonismo de meu psiquismo,

Entalam-se-me, entaramelam-se-me e escorrego e estrambelho-me

Por entre e por sobre o som de palavras incoerentes,

Carentes de coesão e inundadas de prolixidade . . .

Desisto. Disperso-me em paisagens doloridas vistas de longe . . .

Prolixo como o amor e seus descaminhos,

Prolixo como a noite com seus enigmas orlados de néon,

Prolixo como o mar com seus humores afetados,

Prolixo como os charcos com seu aparente sossego sepulcral,

Prolixo como conversa de bêbado ao pé de um balcão de botequim . . .

Sim, prolixo . . .

Prolixo como eu mesmo . . .

Oliveira