CANÇÃO DO AMIGO
Para Luiz Gustavo Leitão Vieira
Será que és o único, espécie de Ulisses
A suspirar pelos deuses e pelos heróis?
Chegou o tempo do levante, da loucura
Própria legitimando os egressos e
Os regressos, as ganas e as ganâncias.
E tu indagas se os teus apelos procedem,
Se a tua indignação não é apenas cólera,
Queixume ou mal-entendido?
Claro que Ítaca não é tua pátria,
Nem a veneranda Calipso teu algoz.
As hostilidades de agora não são
Olímpicas e o destino não restringe
Mais os desatinos no curso dos tempos.
Quem é livre para celebrar o Deus ausente?
Quem é suficientemente ousado para
Festejar aquele que nos abandonou na Terra
Diante de touros e cordeiros e foi refugiar-se
No Céu das orações, na sintaxe perfeita
Das frases feitas? Não, não é o Pai nosso
Que é evocado aqui. Mas os vaticínios,
Os poetas diante de si mesmos
E uma legião de amigos conduzindo
O canto que flutuava, a semente
Que se afastava da mente
E o murmúrio de qualquer coisa
Que estava além do muro - e aquém.
E por acaso alguém escuta essa cantilena frágil?
Claro que o mundo já rodopiou muito
E o homem mudou pouco.
Claro que as moedas continuam
Tendo duas faces, a do herói e a do tirano.
Claro que o passado continua trazendo
O ímpeto de espíritos comovidos,
Preces extremas, maravilhamentos
E discursos enfadonhos. É claro também
Que o futuro nos inquieta e atormenta
Porque o futuro é o Nada. Mas quem
Esqueceria que tem futuro?
Sim, minha alma ainda pode escutar
A minha alma e o que somos por dentro
Nem os nevoeiros podem apagar
O que somos por dentro.
Ainda assim, é preciso buscar na Ágora
Ou no agora, aquilo que resiste em Aquiles.
Afinal, a amizade não existiria
Sem a fidelidade dos amigos.