ANIVERSÁRIO

Teu aniversário, no claro

se comemora.

Desculpa de levar-te este poema.

Os poemas são inúteis.

Como uma flor.

Uma abelha.

Ou um ninho de passarinho.

E para ser bem franco,

eu quero mesmo te dar uma coisa inútil.

Afinal, aos oitenta e três anos

o que pode um pai esperar

de um filho:

que o filho tenha alguma utilidade ?

Não meu pai. Eu sei que as coisas

mais importantes para o senhor

estão muito além dessas molduras

que podem enfeitar

paredes

e decorar salas.

Por isso eu fiz questão

de te escrever um poema.

Afinal, o que a gente pode fazer com um poema.

Ou com uma tarde ao entardecer.

(Parece pleonasmo, repetição.

Mas não é. É assim mesmo:

uma tarde ao entardecer.)

E me desculpem os gramáticos,

os dicionaristas.

O que eu quero dizer é exatamente isso:

uma tarde ao entardecer.

Eu quero expressar de fato

e sinceramente essas nuances

que nunca se repetem.

Ou se repetem.

Mas sempre de uma maneira nova.

Única. Singular.

Seja no céu. Na boca. No céu da boca.

Na palavra impronunciável.

Ou no silêncio

que guarda mistérios de cofre

e segredos de porão.

Nunca te pedi a mão

tão pouco enrugada

e macia

para beijar-lhe as veias

-- hoje grossas.

Nem procurei nos olhos gateados

aquelas certezas do teu viver.

Em verdade, as tuas certezas

nada mais foram que a permanência

de tuas dúvidas infantis.

Teu jeito tão próprio

de viver e conviver

não fizeram de você um homem cansado

ou desapontado.

Tua mobilidade é perfeita.

E tua fé resiste a tudo.

Não há gritos --presos ou soltos-- em teu lábio.

Acho que você foi,

desde menino,

aquela brutalidade de encantamento

que habita

o princípio de tudo.

Barro inicial,

argamassa de sonho,

síntese

nunca domesticada.

Talvez Riobaldo.

Talvez Diadorim.

O certo mesmo é que teu coração mistura amores.

Tudo cabe.

Desde a varanda de ver nuvens

até a sorte momentânea.

Mas é pelo tudo contra

--tua aposta mais exaltada--

é que se percebe

que nunca houve regra

de nenhum meio termo.

O senhor sabia que coração

cresce mesmo

é de todo lado.

Polígono, hexágono,

triângulo.

E me passou isso,

passando o proibido:

o dito e o interdito.

Sempre achei

que o espírito é cavalo

que escolhe estrada.

Rumos do porvir. Veredas.

Estreitos caminhos de si mesmo.

Grotão de águas plurais.

Confluências. Convergências.

E a iluminar a gente

a certeza de que um rio é sempre sem antiguidade.

Igual pessoa se desmisturando da nascente,

faceando com as surpresas.

Ficando nova.

Novo pai. Novo filho.

O que fomos nesses tempos todos de teus 83 anos?

No repartir miudinho de cada dia?

No beijar escondido da tua santinha?

Na alegria veemente das praias

e do teu fascínio pelo mar,

pela montanha,

e por tudo aquilo

que se mostrava diante, defronte,

além ou aquém de você mesmo?

Recintos do perdurável.

Instantes de essência.

Pai, impregnaste todos os meus modos de ser

com teu exemplo visceral.

Inesquecíveis são as coisas,

todas as coisas,

quando penetramos nelas

com o desejo original

de revelação.

Nunca neguei ao senhor meus pés, mãos e ouvidos,

nem meus entendimentos

precipitados.

Todos nós fomos feitos

aos trancos

e barrancos.

Nos vãos. Nos desvãos.

Nos desvios.

E no encontro daquilo

--Deus selvagem--

sempre escondido

nas curvas do corpo

e nas sapiências da alma.

Eu mesmo sempre estive indo a meu esmo.

Procurando meu ermo.

Minha solidão.

Minha pedra fincada

no chão.

E meu próprio filho já me disse:

meu pai do chão,

meu pai do céu.

E isto nunca deixará de ser

sabedoria danada. Poetagem.

Meninice desancorada.

Acreditei

e ainda acredito

em dar um jeito

ao suceder.

Ao pensamento quero dar

as direções,

os contágios,

as altas febres.

E as emoções quero dar

um lugar,

seu espaço fundamental,

simples,

sem nenhum aviso.

Meu lema é viver

e deixar viver.