Entre pedra e água (Arte poética de João Cabral de Melo Neto)

1. Entre pedra e água, essa indolência

de mineral voltado para

dentro de si mesmo até quando

em intensidade pulsando;

que se pedra e água à roda-viva

emaranha alheios corpos,

eles corpos nada verão

do miolo desse ocluso pão;

que entre pedra e água, a indiferença

geométrica, lâmina fria

desvenda as coisas, os alheios

volumes, nunca o próprio seio;

assim entre pedra e água, a faca

corta o poema, bem ao meio

da frieza bem-humorada

da palavra, infecta de nada.

2. Essa a imagem, sempre de fora

que o dentro é só dela palavra

medida com precisão, cálculo

entre pedra e água, o mais agudo;

que a alta defesa da palavra

é carta geográfica para

não se orientar, severo enigma

entre pedra e água, inapreendida;

que é essa a matemática doma

do que indômito se faz, verbo

deserto, de mil fímbrias, lâmina

entre pedra e água, onde se escande

o poema numa fímbria exata

e contida como se o número

fosse o próprio timbre do canto

entre pedra e água, penetrante;

3. Se quando alfinetes penetrem

uma garganta, entre pedra e água

jorre o canto, nunca de espesso

sangue, mas sim de seu avesso;

que um alfinete ou outra seta

procura o canto entre pedra e água

por conhecê-lo aí vazio

de lágrimas ou outros cios;

que uma agulha busca somente

a natureza entre pedra e água,

a natureza sem vertigens

só dela agulha, impassível;

que esse estilete fere tanto

uma garganta, entre pedra e água

para saber-se imagem pura,

poema inciso em ponta de agulha.

4. A pedra doma a água, o seu ímpeto

mais voraz, resistindo até

que, subjugada, ela arrefeça

seus vórtices e pare, queda;

a água doma a pedra, polindo

as suas arestas até

que se volte sobre si mesma,

lisa, tal seda, pedra seda;

esse metódico trabalho,

água contida pela pedra,

tal a palavra, entre pedra e água

que se contém, em grave lavra;

geometria elementar,

o amaciar da pedra pela água,

tal o poeta, entre pedra e água,

esse engenheiro da palavra.

5. Entre pedra e água está o poema,

sem perder sua vegetal

natureza aquém de raízes

e além-ramada, em cicatrizes;

cicatrizes que mais se con-

densam, em sendo o próprio âmago

dele poema entre pedra e água

de todo excesso depurado;

depurado em fino alguidar

onde o que entre pedra e água seja

o mais puro ouro que se busca,

o verbo vivo, verbo-súmula;

súmula do que de mais livre

concentra-se numa palavra,

antes e depois, mesmo quando

de entre pedra e água findo o encanto.

(Em 1972, escrevi este exercício de admiração a João Cabral de Melo Neto. Contraria muito o poeta, eu pensava, e esqueci-o. Hoje não tenho tantos escrúpulos e mostro-o.)